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Vazios

Como se o sangue tivesse se tornado preto, ausente de cor, e se esvaziassem as veias num vácuo preenchido da infinitude do espaço, unindo-se ao vazio da alma nessa madrugada etílica. Jogo uma bóia preenchida de músicas dos Smiths que me ajuda a permanecer na superfície por bastante tempo. Qual será a profundidade dessa noite? As músicas, que recentemente voltaram-se contra mim, oferecem as respostas cabíveis e necessárias, mas novamente me abstenho de responder e de afundar.

Inflação I

--> Silva percorria os corredores do supermercado ainda vazio às sete horas, rumo aos balcões refrigerados, ignorando os produtos ao redor. Lá chegando, abriu o casaco e pegou os pombos cinzentos que trazia amarrados à cintura, ajeitou-os entre os frangos, cobriu com gelo. Comprou um refrigerante e foi para casa, da varanda assistiu à chegada da polícia e das vans da imprensa. Aumenta o tomate, aumenta! - Pensou, sentindo-se vingado.

TEATRO DE MARIONETES

O lobo tenta comer o porquinho, sem sucesso. A cada investida, a platéia grita histérica. Enfim, finca-lhe os dentes. Que horrível gosto de couro, cheiro de suor, pêlos incômodos, e o bicho não parava de gritar. Desiste. - Alguém aí tem uma bala? A criança da primeira fila agarra o lobo, e por todas é ovacionado e celebrado. Jogam-no para o alto, tiram fotos. O porco, esquecido e mordido, sai pela direita.

um Museu triste

--> Agora entendi. É preciso estar um pouco fora de mim para escrever. Quando me tenho e contenho tanto em labores tão múltiplos pouco me resta de espaço para respiração. Hoje foi um dia assim, de sair de mim. No Museu Nacional resolvi pela primeira vez ver alguma coisa, nas dezenas de visitas anteriores pouco havia a observar, apenas a olhar de relance, assim rápido, acompanhando cada filho enquanto crescia e corria de um corredor ao outro. Hoje o filho foi de mãos dadas com o pai de um amigo e o arrastou enquanto eu via. Vi as múmias e reparei pela primeira vez que eram todas mulheres, as três. Duas estavam muito enroladas, preservadas. A terceira estava em suas vestes primárias, e parecia uma menina coberta por alguma malha justinha. Acompanhei a perna perfeita, a panturrilha, cheguei aos pés, esses desenrolados mostrando pequenos dedos, alguns já descarnados ossinhos. Subindo pelo ventre, seios, revestidos de desenhos e diagramas rituais, depois uma cabeça descobe

A última viagem

Arraial do cabo, praia grande, 12 de abril de 2014 - Pai, vamos cavar um buraco até o centro da terra? - Não dá, Miguel, o centro da terra é muito longe. - O que tem lá? - Ninguém sabe, uns acham que é cheio de lava de vulcão, outros acham que tem dinossauros. - Eu vou cavar.. Algum tempo depois.. - Pai, tou cansado. Cava para mim? Cavei, cavei, cavei.. - Miguel, o buraco já está bem fundo, cabe até você lá dentro. - Ainda falta muito para o centro da terra? - Muito muito - O rio de janeiro é mais perto que o centro de terra? - É sim. - Então cava até o Rio para a mamãe e o Tito virem pracá.

meus remédios

Renata abriu a mochila, retirou um pacotinho plástico selado, de um lado cor prata, do outro transparente. Dentro dele, cerca de dez comprimidos. - O marrom é ômega 3, os branquinhos são polivitamínicos e aqueles verdes são para meu joelho, que é bem ruim. Para todas as articulações, fortalece todas. Sim, tomo todos os dias, já vêm assim embaladinhos e dentro de uma caixa maior. - Uma vez fiquei três dias sem tomar, de tanto tempo com a medicação, o corpo sente falta e reclama, tomo todos os dias há pelo menos dois anos. Nessa vez que viajei sem os remédios fomos para um lugar lindo, mas eu estava tão cansada (falta dos comprimidos) que fiquei em casa sozinha. Meu marido estava em Friburgo quando as aranhas começaram a aparecer. - Sim, daquelas peludas. Subiam na cama e subiam umas por cima das outras fazendo barulhos de caranguejos atravessando a rua. Eu esperneava e gritava, para cada aranha chutada subiam dez. - Aí elas desapareceram? - Como se fossem frágeis borboletas. Assim

nariz

- Tire a mão do meu nariz - Não dá, está presa. - Peraí, deixa eu cutucar... Pronto: saiu. - Nãonão, faz de novo. O que saiu foi o pé. - O que seu pé fazia no meu nariz? - Estava tentando passar, cheguei o nariz pro lado e ele escorregou, prendendo meu pé e minha mão. Agora o pé está livre, só a mão continua entalada. - Melhor tirar o nariz para você passar. Assim..assim, estique o braço..ok, livre! - Obrigado! Por falar nisso, seu nariz está cheio de poeira, veja como minha mão ficou suja. - Tem razão, assim ninguém compra. O escultor deixou aqui há anos, lá atrás tem as orelhas, quer ver?