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A Ilha de ontem

Um tremor e... Os habitantes da Vila acordaram sobressaltados no meio da madrugada. De manhã, viram que no meio de sua linda baía, bem no meio tinha surgido uma curiosa ilha. O terremoto da madrugada a tinha feito surgir, pensaram. Pularam nos barcos e foram explorar o novo território. Era uma parte de terra estreita, marrom e lodosa, com uns 200 metros de extensão, 40 de largura e 20 de altura. Apesar do solo pegajoso, parecia bem firme, e alguns já queriam sua propriedade reivindicar. Os cientistas encontraram metano na superfície, diversos pequenos pontos de vazamento do gás, e isso os fez suspeitar que a ilha poderia ser um “vulcão de lodo” – uma grande quantidade de gás poderia ter sido liberada com o terremoto e formado uma bolha no fundo do mar, a ilha seria o cume da bolha. Se fosse isso, poderia explodir toda a Vila a qualquer momento. Ninguém mais queria a Ilha (vamos chamá-la assim). Afinal, nem era plana, e fedia bastante, perceberam enfim. Um grupo de mergulha

Outros recomeços

Andava sempre dois passos à frente de sua sombra, para não cair no escuro buraco por ela demarcado, ameaçador. O buraco o seguia, profundo, onde quer que fosse, tentando engoli-lo. Na metade do dia não podia sair às ruas, ou se saísse, precisava usar poderosos refletores que deslocavam a sombra a pino um pouco para os lados, algo inconveniente. Preferia caminhar sobre as águas, que dissolviam a sombra, mas nem sempre havia um lago ou piscina disponível, e o mar não levava a parte alguma. No fim do dia, depois de tanto fugir de si mesmo, chegava-se perto de algum muro e o sol poente trazia a sombra para o seu lado. Aí entrava no buraco como quem entra pela porta de casa, e todo dia ficava lá dentro escondido esperando o tempo voar, a noite passar, sonhando com alvoradas de bolinhos de chuva com café. Isso foi há anos atrás.

The End

Era uma bela carioca cheia de acessórios e itens reluzentes, em uma esquina movimentada de Ipanema. Bebericava um frozen de frutas tropicais em uma lanchonete chique qualquer. Ao seu redor, outras tantas meninas bem parecidas entre si, tanto que quase poderiam constituir uma nova raça, como os poodles ou yorkshires para os cães, cada qual com seu copo de milk-shake, suco ou smoothies , todas olhando para o mesmo ponto ali na rua. Bem no cruzamento, uma ambulância cheia de luzes e paramédicos com pás recolhiam os restos de alguém. Eram fotos, desenhos, cartas, fluidos, letras, chaves, tabuleiros, páginas e mais páginas, canetas, sonhos, ideias. Tudo espalhado, e já muito coberto das marcas de pneus e de sapatos. A pessoa, esvaziada, transparente, na outra esquina bebia um café forte. Talvez não fosse ainda tarde demais para ser socorrida.

o numero da vovó

Havia um caixão pesado e um coveiro apenas, que não conseguia levantá-lo porque era pesado demais para ele. Havia um grupo de pessoas tristes e pouco espaço, pouco adiantavam os braços. Havia um túmulo sujo, descuidado, anônimo, à espera do caixão, que fora impedido de entrar no túmulo correto por uma das irmãs más do castelo, que reservara o buraco para os seus. Havia um corpo inchado, sofrido, triste e desfigurado no caixão, alheio a tudo isso. Havia o sol, escaldante sol, e aos poucos os braços conseguiram passar por baixo, o peso levantar, e o coveiro à cova baixou o corpo da melhor pessoa que no mundo havia. Lacradas as bordas de cimento cinzento, colamos com superbonder um caco (recolhido de outra tumba) sobre um papelzinho numerado para nunca esquecermos onde vovó estava guardada. 54330.

A Caminho da Uruguaiana

Era uma rua normal do centro da cidade, dessas mal cheirosas e gordurosas, e caminhava entre a multidão apressada sentindo meus pés ora respingarem águas sujas, ora escorregarem na sujeira. Sentada numa cadeira bem na esquina, uma mulher loira fazia as unhas do pé. Não pude deixar de reparar no seu dedinho, que era na verdade apenas meio dedinho e terminava num toco esbranquiçado de osso com um tanto de revestimento esponjoso de carne. Não havia sangue, parecia tudo um tanto ressecado, como uma esponja velha, e a mulher fazia as demais unhas sem pensar nele. Tomei o metrô, mas o toco de dedo não me saía da cabeça. Fiz algum comentário a respeito com uma senhora que dividia o banco comigo e ela arregalou os olhos assustada, sussurrando algo que não pude compreender. Desembarcou às pressas, olhando ao redor. No dia seguinte, lá estavam as mesmas ruas, e na mesma esquina a mulher do dedo misterioso. Dessa vez, tocava acordeon e remexia um chapéu de moedas c

Casa das sombras

Na casa das sombras, H. aguardava inerte a inserção de mais um tubo. Estava conectada a vários aparelhos e notava grande parte da movimentação ao seu redor, as sombras se movimentando e bips ritmados. Não sentia seu corpo, não conseguia falar, mas percebia o movimento e as sombras num manto pulsante de vermelho carne. Ouvia as vozes, diferentes vozes. Acordava e dormia e ouvia. As vozes diziam que recisavam inserir um outro tubo, sabe-se lá onde, e H. aguardava para ver se sentiria isso. Acordava e dormia, às vezes acordava na escuridão total, sabia que estava viva pelos incessantes bips, às vezes acordava nas sombras avermelhadas que dançavam líquidas. Não conseguia abrir os olhos. Não conseguia lembrar das ocasiões em que acordara, estava ali há bastante tempo mas sem memória, assim cada despertar era uma surpresa. H. sonhava quando dormia com as delícias da infância, das viagens, dos netos, com as comidas trabalhosas e os crochês impossíveis, aí acordava nas sombras. Surpresa!

Ai!

Com a unha do polegar direito, crescida e suja, cutuquei a ferida. Forcei o canto da casquinha, que cedeu, e inseri a unha como alavanca, dolorosamente levantando e descolando. Saiu um liquido esverdeado, uma gotinha só, depois –ploc! – casquinha levantada. A ponta, do lado oposto, parecia unida à pele e foi preciso fazer mais força, finalmente saiu mas o esforço rompeu algo e o sangue começou a minar. O antebraço estava bem vermelho agora, as bordas do machucado eram esponjosas e arroxeadas, úmidas e quentes. Ofereci ao cachorro, que lambeu e lambeu, abanando o rabo. Coloquei a casquinha de volta e pressionei uns minutos, selei com bandaid para grudar de novo, para amanhã ter mais diversão.