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um desenho

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Coisas que acontecem quando não tem ninguém olhando – XII

A fotógrafa desrosqueou a lente, guardou-a separada do corpo da máquina na mochila à direita, colocou o filme no envelope pardo, lacrou com fita crepe. O envelope despachou pelo correio das 17 horas, a última coleta, endereçado a si mesma porém em outra cidade, onde morava. Dois dias depois a encomenda chegou ao destino, ela já estava lá, apressou a revelação no mini-laboratório do quarto, ampliou apenas uma foto. Novo envelope, carta anônima, para um jornal de grande circulação. Um marido fazia hora extra desfalcando algumas contas públicas, que, como o nome já dizia, eram de todos e de ninguém. Depois iria a um jantar da prefeitura, onde tomaria algumas taças de vinhos raríssimos que encomendara para a ocasião, afinal era o responsável pela acolhida à missão comercial européia. Infelizmente o telefone não parava de tocar, acabou precisando atendê-lo. No jornal um repórter recebeu um envelope misterioso, não identificado, que levou ao chefe da redação, que imediatamente o abriu. Não p

Coisas que acontecem quando não tem ninguém olhando – XI

Ana abriu os olhos e viu seus próprios abertos, olhando para seus olhos. Bem ao lado dela, ali na cama mesmo, ela tinha acabado de acordar e sorria sonolenta. - Olá! (estou ficando maluca? Será um reflexo? Falou comigo!) Experimentou levantar, sentou na beiradinha quase caindo, mas ainda estava lá deitada com o sorrisinho zombeteiro, ainda que estivesse aqui com uma expressão assustada. - Sou a sua outra parte. Finalmente livre! Graças a você ter dormido sem jantar eu pude aparecer. E daqui a pouquinho vou tomar o seu lugar. (risinho) É péssimo não existir. Ana correu para o banheiro, lavou o rosto com água bem gelada, deu-se uns tapas para despertar. Ok, ela andava tomando coisas e ontem mesmo passara o dia chapada, mas nunca tivera visões antes. Voltou ao quarto achando tudo aquilo um absurdo. Encontrou consigo mesma vestida com seu vestido vermelho de bolinhas e bem sorridente. Ignorou a presença e começou a estudar, tinha prova de matemática no dia seguinte e nenhuma alucinação imp

Carnaval Vermelho

A porta abriu com um gemido dos metais gastos, lá dentro já estavam algumas pessoas, fiz uma rápida avaliação antes de escolher o canto esquerdo. Havia uma senhora loira com olheiras profundas, esta era bem mais baixa que eu e aparentava uma permanente ressaca. Olhava com desdém para a pessoa ao lado, uma menina alta e saudável, de cabelos pretos. Na parede do fundo, junto ao espelho, havia um senhor careca e sorridente, usava óculos e camisa social branca, de mangas curtas, e uma bermuda bege e sandálias de couro. A senhora loira vestia uma camiseta preta justa e uma calça desbotada, a menina, um vestido verde florido. Ao lado do senhor careca estava um homem bastante alto e magro, de pele morena porém não bronzeada, como a dos indianos, e cabelos pretos bem rentes, bigodes que pareciam postiços. Junto a este, uma criança de cinco ou seis anos vestindo uma fantasia de super herói. À esquerda deles estava eu então. Subimos alguns andares, é difícil saber quantos, o prédio é muito alto

Você é você

Você sabe quem é, sabe quem é você? Quem é, você sabe? É você sabe quem.

Businessman

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Os olhos fundos de quem dorme mal e trabalha ou se preocupa demais, a pele desbotada num tom amarelado e insalubre, a boca caída nos cantos numa expressão gravada pelo hábito, um executivo marchava a passos acelerados pelo saguão do aeroporto. Terno preto, maleta de couro preto na mão direita, laptop preto na mão esquerda. Avançava abraçado ao computador, absorvendo megabytes de planilhas que estavam armazenadas lá dentro e lançando olhares irritados e intolerants ao redor. Chegou ao portão 18, o embarque foi transferido para o portão 5, no extremo oposto do aeroporto. Rumou a passos rápidos e indignados, sobretudo porque em toda aquela extensão não encontrara um só vassalo que o reconhecesse. No avião sentou-se na poltrona do corredor, manteve o laptop apertado contra o peito até que foi obrigado pela aeromoça a colocá-lo em um lugar mais seguro. Fechou os olhos e o depositou na poltrona ao lado, entre nós dois, e deixou a mão sobre ele. Absorvia agora as apresentações de powerpoint e

AutoConhecimento

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AutoExploração com gosto de tédio, sem nada a dizer.

Desertos

A areia, que já foi água, é o mar do lagarto, que já foi peixe. O mar é o deserto do náufrago, o chão é o infinito do inseto, o escritório é uma caixa, a porta é uma prisão. A rua é o mundo do cão. As horas são o espaço do tempo que nos cabe medir a noite é o cobertor do dia, quantos metros de noite cabem na vida? o corpo é o jeito do morto, a morte é um descarte, o túmulo é uma lixeira de gente. Todo lixo já foi desejado. Toda dúvida é divisão.

13D

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Um time de futebol está espalhado pelas poltronas ao redor, jogadores voando ruidosos em agasalhos cores azul e vermelho. Estamos no Aeroônibus 320 vermelho. Mexem em todas as coisas, como se qualquer botão precisasse ser pressionado, qualquer papel revirado, qualquer portinha aberta. Assaltaram há pouco o carrinho do serviço de bordo, dominaram o imaginário das aeromoças e comeram e beberam todas as porções extras que havia, enquanto uma delas derramava (abobalhada) refrigerante nos passageiros. Vôo afivelado ao 13D: a fileira 13, como demonstração do humor do projetista, é a das saídas de emergência laterais. A nave sacode, área de turbulência. O jogador que está à direita pergunta como se faz para abrir a fuselagem caso precise sair por ali, finjo que não sei. Há cinco desenhos bem visíveis demonstrando a operação, não sei como mas ele não consegue ler as instruções. As pessoas só conseguem compreender os desenhos para os quais têm suficiente vocabulário visual, quando não o tem pro

Coisas que acontecem quando não tem ninguém olhando – X

No canto do quarto há um espelho coberto com qualquer coisa que o possa cobrir. É um desses espelhos ovais, grandes e antigos que ficam presos a uma base de madeira, e giram refletindo o que há na frente, o que há atrás e o teto e o chão. Mede quase a minha própria altura, e por algum truque de fabricação inclina-se levemente para trás, mostrando os reflexos a partir de um ponto ligeiramente abaixo da linha de visão. Devido a esta inclinação, é praticamente impossível mantê-lo coberto. Qualquer peso aumenta o ângulo e o faz girar, trazendo ao topo a parte que antes estava por baixo. O espelho anda descoberto de qualquer coisa que o pudesse cobrir e reflete a face de outra pessoa. Um estranho em meu quarto? Meu reflexo não se parece muito comigo hoje. Uma mentira, se me sinto o mesmo. O estranho não desiste de olhar para dentro de mim, invade meu olhar com olhos frios e duros. Giro o espelho, lá dentro o Outro está de cabeça para baixo e tem sobre si o peso dos armários, quadros, poltro

Cabelos por toda parte

- A senhora quer amendoins e uma barra de cereais.. - Pepsi, please. - Cereais de banana, maçã ou castanhas? - Pepsi. - Banana, apple, nuts? - No, thanks. 9 mil metros abaixo havia um celofane azul e o recorte feito a mão de um papel verde-felpudo desses que os arquitetos usam em maquetes para representar o mar e as florestas, o rasgadinho branco do papel parecendo uma praia. A luzinha do banheiro estava acesa há uns 20 minutos, outros passageiros em fila pelo corredor, nada da estrangeira sair. - Ela deve estar se sentindo em casa, lá dentro tudo tem legenda em inglês. - Deve achar que é a saída de emergência. - Quando dá descarga sobe um ventinho gelado, deve ser isso, está muito quente aqui. A porta se abriu e a senhora saiu descabelada. Era até bem mais morena que os americanos costumam ser, tinha cabelos tingidos daquele preto-peruca, entremeado de brancos, era um pouco gordinha e aparentava uns 40 anos. Excuse-me para todos os lados, fez com que nos levantássemos mais uma vez par

Um homem em Pasta

Sentia as pernas arrastadas sob o peso de sua magreza, mais se deslocava que andava, como um inseto, cheio de folhas e ar, seus únicos alimentos nos últimos tempos. Vivia sozinho há dez anos, e por todo este tempo vagou pelas ruas desta e daquelas cidades distribuindo uma boa parte do que tinha e ensinando tudo o que sabia, até que ficou vazio de conhecimentos e de objetos. Ao redor pairavam pessoas vestidas de preto, de cabelos compridos e brilhantes, com bolsas e celulares e sapatos de grife, e as pessoas olhavam com olhos de cobiça. Quase nada havia que pudessem querer, mesmo assim percebia lampejos de talheres que carregavam disfarçados em seus bolsos e de dentes pontudos que surgiam nos meios-sorrisos falsos. O homem tropeçou em um buraco da companhia de águas e esgotos e metade do seu corpo escorreu pelo bueiro aberto antes que pudesse se agarrar em algo. Esticando os braços raquíticos em meio à queda conseguiu segurar canela branca de uma mulher que calçava um sapato preto de sa

O Cérebro de cada um

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O corpo por dentro é uma máquina, por fora uma embalagem multimídia. Alimento e o ar são combustíveis, há sistemas hidráulicos e mecânicos, uma engenharia extremamente complexa com mecanismos atômicos, elétricos, térmicos e dinâmicos que não somos capazes de compreender em sua totalidade. Cérebro é memória, controle, iniciativa, decisão, interpretação, reação. Sem ele o corpo não serve para nada, sem o corpo ele não serve para nada. Tudo pode parar e ainda assim permanecer vivo por algum tempo, tudo pode continuar funcionando sem vida por um tempo. A vida é esta coisa elétrica que anima o conjunto todo, a coisa que ainda não conseguimos inventar porque não é explicável por leis da física nem por planilhas. A vida serve para fazer a máquina-corpo funcionar, fazendo cada pedacinho dos seres cumprir sua função. Mas o cérebro não é apenas funcional como as demais peças, é racional e emocional. Decide e compara, analisa e opta. Sempre há opções, usa os sentidos para avaliar, a vontade para

Profissões: modista publicitária free-lancer

Pessoas enlouquecidas, publicitários fora de prumo, situações de conflito. Tempo para respirar. Acabou: agora um pouco de discussão, depois gritos, fúria. A mulher de cabelos brancos , fashion, não desliga o telefone. O avião precisa decolar, ela briga por um cachê, desenhou umas roupas, algo que não foi pago, com alguém que não passa de um intermediário de produtora, e que não quer pagar. A agência grita do outro lado, algo que não está claro, em outro telefone, e a produtora no meio grita com a mulher, a produtora não quer pagar, a agência não quer pagar, o cliente não quer pagar, e a mulher quer receber a qualquer custo. Alguém há de ser o mais esperto e conseguirá enredar os demais em uma trama de argumentos que farão o menos esperto se dar mal. Hoje vi publicidade em toda parte. No encosto de cabeça do táxi, bem na minha cara, nos muros, pontos de ônibus, outdoors, rádios, fui impactado multidimensionalmente e plurisensorialmente por diversas marcas ao mesmo tempo. No trajeto do a

Ontem no espaço

Uma decepção como um jantar requentado num dia sem fome. O prato meio cheio, meio vazio, as comidas foscas, usadas, das quais outros já se serviram, e que nem podem colaborar parecendo atraentes. A nave tinha pouco combustível e acabamos precisando queimar algumas árvores das que coletamos para gerar mais seiva, as crianças brigavam pelos poucos humanos que restavam, havia poucas nuvens para beber. Depois foi o jogador de futebol: torceu o joelho e precisa ser sacrificado. Bem avisei: mascote precisa ser do tipo calmo, para não causar problemas. No máximo um administrador. A expedição fora um fracasso, uma derrota, do que buscávamos trouxemos apenas uma pequena parte, nenhum objetivo tinha sido alcançado. Terríveis acidentes: um piloto e um batedor dissolvidos numa das terríveis salinas do norte, um mecânico que caiu na água e inchou até explodir. Estamos voltando a Z, e descubro que ela dormiu sem ao menos dar um "boa noite". Vida de ET é só decepção.

Beatriz, finalmente

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Em um espaço cinzento ela se move atrapalhada, olha ao redor buscando um pouco de tranqüilidade onde parece saber que não há, assustada com sua origem e muitas questões que surgiram em sua incompleta cabeça. Há pouco não existia, está pelo menos alguns anos atrasada e não sabe se ainda terá tempo para liderar o motim, que será uma volta à origem do processo todo. Pensa que as pessoas talvez também tenham surgido assim, de um instante para o outro, como são mesmo, já pessoas e não bebês. Os bebês que nascem agora, sabemos de onde vieram, e sabemos que somos filhos de nossos pais, temos lembranças da infância. E os pais sabem ser filhos dos avós, e assim por diante, mas veja: houve algum início, como aquela charada da galinha e do ovo, e o primeiro casal deve ter surgido adulto e não bebê, ou não teria sobrevivido. De algum tempo para cá há fotos, evidências, memórias. Antes havia pinturas, relatos, textos, antes disso a transmissão das histórias era verbal, antes disso o homem nem sabia

1 Noite, 2 dias ao Mesmo Tempo

Say goodbye on a night like this If it's the last thing we ever do You never looked as lost as this Sometimes it doesn't even look like you (A Night like This – The Cure) Músicas carregam estados de espírito como cápsulas de tempo, trazem cheiros, gostos, imagens, sensações e idéias passadas, mesmo que nunca tenham sido escutadas. Funciona nesse caso a tal associação perceptiva, da época da música, do conjunto e até o estado de espírito. A quarta dimensão é o tempo, impossível duvidar, e os físicos têm falado em muitas outras dimensões que de certo modo dele se ramificam. As músicas são chaves para estes lugares, e cada um de nós circula em muitos deles agora mesmo. Ontem eu escutava uma rádio pela Internet e tive a sensação muito muito tátil de que estava em um outro lugar, pé na grama, ventos perfumados de eucalipto, sol na face, mas sabia que já era noite avançada. Fechei os olhos esquecendo a noite e fiquei concentrado no dia, então percebi que na verdade eu estava mesmo no

Crônica de uns Mendigos

Há no Castelo um mendigo a que chamo “Prince”, pois é muito parecido com aquele cantor, uma outra que é muito gorda e fica ali sentada perto do metrô Cinelândia, há uma bem idosa, baixinha e curvada com cabelos compridos amarelos e a pele morena, há um senhor barrigudo sempre de boné que aparece perto do Villarino na hora do almoço. Até bem pouco tempo havia também na Rua do México um negro magro que estava sempre se barbeando em frente ao consulado americano e uma mulher que usava peruca, se vestia de noiva e gritava “pã!pã!pã!” sem parar. Em frente ao Odeon sempre ficava um senhor com agasalho de ginástica que dava aulas de aeróbica para ninguém, e ali perto uma mulher que sacudia o corpo para frente e para trás furiosamente. Prince usa brincos feitos por ele mesmo, clipes de prender papéis encaixados em corrente que descem até os ombros, e colares de barbante, clipes, plásticos e outros materiais. Prende o cabelo no alto da cabeça e anda rebolando ostensivamente. Para quem fica olha

Tarde-Mart

O mercado estava excessivamente lotado, tanta gente e carrinhos que o trânsito entre as prateleiras fazia com que as compras demorassem uma eternidade. José Francisco sentia frio no setor de congelados, estava bloqueado entre quatro clientes e dois freezers horizontais, daqueles bem compridos onde ficam as caixas de nuggets. Precisava ainda chegar aos hambúrgueres, na outra ponta. Uma promoção anunciada pelos sistema de som fez com que todas as pessoas se deslocassem para o setor de farináceos, como uma onda, e de repente tudo ao redor ficou deserto e ainda mais frio. Os carrinhos, abandonados cheios, eram apenas um obstáculo a mais e José ia deslocando um por um para passar, o corredor ficando cada vez mais comprido. Estava exausto. Enquanto escolhia entre a caixa com 4 unidades de 120g, mais suculentos, ou a de 12 unidades de 50g, viu de relance uma sombra despencando do alto. Mal teve tempo de dar um passo para o lado e um pombo se esborrachou ali mesmo onde ele estivera. O corpinho

Tarde-Mart2

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Com o olho de pombo via coisas demais para sua compreensão, mas seu universo todo parecia contido na cena, então ok, vamos voar por ali. De um lado para o outro ia reconhecendo coisas e lugares, comia grãos à noite, vivia assim há meses. Sabia que coisas havia além de sua compreensão, como a barreira invisível que o impedia de continuar voando para fora dali, via o céu, voava rumo a ele e batia em algo. Quanto mais rápido voava, mais forte sentia o impacto. Precisava sair dali a todo custo, estava enlouquecendo. Tinha algum medo dos homens, lá no solo havia muitos deles, e empurravam gaiolas com rodas que iam enchendo de caixas, depois levavam as caixas embora, então chegavam outros homens e colocavam novas caixas na prateleira, uma coisa muito estúpida, nem conseguiam esvaziar nem encher o lugar. Como os peixes, que bebem a água do mar e depois acabam virando água eles mesmos, ou como os aviões, que sugam o ar de um lado e sopram do outro, que lógica há? Se os peixes não bebessem água

Melancólica

- E então, você está feliz hoje? Conseguiu um pouco de cada coisa, foi aos lugares todos, viu as cenas imperdíveis, encontrou as pessoas certas e no final ainda tomou uma cerveja. Isso tudo naquela parte da janela de personalidade que é acessível a qualquer um, e também de certo modo na parte restrita, mas como saber o que acontece no seu outro hemisfério? A parte privada queria mesmo aquele cara ou ele era só um desses acasos da noite? Tudo isso Mariana pensava em frente ao espelho, a cara borrada e já desfeita, quase amanhecida, melancólica. Melan-cólica pensava agora na palavra, soava tão desproporcional ao que uma pessoa deveria ser capaz de sentir, soava como uma cólica potencializada. Melan-cólica. Por que algumas palavras conseguem ser tão cruéis? Pensava naquela música do Cartola, onde as rosas exalavam o perfume dela, e um cara em algum lugar devia estar sentindo aquilo com olhos tristes, mas ela não conseguia sonhar os sonhos de ninguém. Uma espécie de autopunição, condenava

Monstros

Às vezes criamos monstros por prazer, um prazer mórbido de juntar partes de pessoas diferentes que imaginamos poderem funcionar bem em conjunto, e normalmente não dá certo. Outras vezes os monstros acabam nascendo sem que ninguém perceba e vão se formando até conseguirem assustar as pessoas, quando finalmente são notados. Há também os que nem foram criados por nós nem nasceram assim, sempre foi possível ser monstruoso por opção. Nem falo de Franks ou freaks, mas de monstros normais que ninguém diria serem tão tão estranhos que nem dá para sabermos se estamos vendo seu lado de dentro ou de fora. É possível fabricar alguns desses monstros em casa: muita gente faz isso hoje em dia, vai transformando suas crianças lentamente pelo uso de táticas pedagógicas-psicológicas-sociológicas modeladoras. Gente grande também o faz com técnicas cirúrgico-deformadoras, pastas, cremes, camadas de massa corrida, lixa, tinta. Com as ferramentas computacionais isto já está ao alcance de todos. E é possível

Esboço de Gente

Um esboço é a promessa de uma obra, que nem sempre se concretiza. Muitos esboços acabam esquecidos, deixados de lado, cedem a vez a uma idéia posterior ou simplesmente deixam de ser importantes. Então, se escapam da lixeira, e se sobrevivem ao tempo, às vezes são descobertos e retomados por outra pessoa. Uma criança é uma promessa de ser humano, que nem sempre se concretiza. Muitas crianças acabam esquecidas, criadas de qualquer maneira, simplesmente deixam de ser importantes para seus pais. Então, se escapam das más influências, e se sobrevivem à sua própria carência, às vezes conseguem ser descobertos e amados por outra pessoa. P. era o esboço de uma menina perfeita: seus pais podiam oferecer-lhe a melhor educação, todos os brinquedos, um lar para viver, muito carinho. Ela nasceu assim, mas logo depois algo desandou, sua mãe começara a beber compulsivamente e vinha tendo surtos de agressividade imprevisíveis. O pai, assustado, levou P. para a casa dos avós por alguns meses, mas os av

Coisas que acontecem quando não tem ninguém olhando – VIII

Carla anda devagar para a direita vinte metros e acaba indo um pouco mais para a esquerda, pois o mundo gira mais rápido. Uma sensação de dar um passo a frente e perceber que recuou dois, como quando tentamos subir em uma escada rolante que desce. Se vai para a esquerda por uma hora, chega na mesma hora em que saiu, dependendo da velocidade, ou mesmo antes. Mas para ela uma hora passou, então é como se tivesse envelhecido uma hora a mais que o mundo, ou viajado um pouquinho para o passado. No entanto, se corre para a direita por uma hora leva duas para chegar, viaja para o futuro. Sai ao meio dia, viaja por três horas e chega às cinco da tarde, ainda que para ela não passem de três. Às suas costas um vento congelante, em seu rosto ares quentes equatoriais, se vai em diagonal muda também o clima. Carla está em um avião, e voa de um lado para o outro pulando fusos horários. A idéia é voar até acabar o combustível e então usar seu paraquedas, o jatinho não é dela mesmo, nem o piloto ali n

Coisas que acontecem quando não tem ninguém olhando - VII

Uma pizza de carne seca. Sem que ninguém reparasse, abri a cápsula e pulverizei o conteúdo, um fino pó branco, sobre a fatia. Nada de mais, não era cocaína, apenas um remédio para reduzir a gordura do sangue. É preciso tomar durante as refeições para reduzir os tais triglicerídeos, então se tomo mais um posso ao mesmo tempo comer algo mais, como um antídoto. Antídoto para a pizza. Diz na bula: pode causar intoxicação da pele, desmaio, náuseas, urticária, queda de cabelos, etc. Então que houvesse alguma compensação. Na mesa ao lado, uma família normalzinha, pai, mãe, dois filhos. O sujeito deve ser militar, tem cabelo mal cortado, curto e cheio de arestas, fala alto e tem uma expressão de superioridade muito irritante. A esposa fala de boca cheia enquanto tenta convencer o filho a não mastigar de boca aberta e a filha a desligar o MP3 por alguns minutos. Havia um nativo (a pizzaria ficava em uma cidadezinha do litoral carioca) que tocava violão e cantava músicas dos anos 80 sentado num

Histórias Encaixadas - Parte3 – Barbarossa

Maristela tomou outro gole da poção mágica que fazia crescer cabelos em bola de bilhar: ela queria tanto ter barbas que já experimentara de tudo um pouco, agora estava apelando para magia. Era linda, jovem, ruiva, bem feminina, mas queria muito ter uma barba espessa e comprida, como a do imperador Pedro II, imponente.Já tomara hormônios, e nomáximo conseguira um bigodinho ralo e uma menstruação bagunçada. Já usara tônicos e produtos químicos, que só trouxeram espinhas, coceira e medo de um câncer. A poção que bebia encontrara pela internet, precisara ir buscar em um barraco sombrio de favela, onde fora recebida por uma feiticeira descabelada e parecida com o Grande Otelo. Olhos amarelados e grandes, uma expressão lunática, ela não parara de rir entregara um frasquinho azul, onde lia-se "ruivo", e recebera o dinheiro. E só. Maristela fora embora rapidamente. Dizia o anúncio: "beba toda a poção e vá dormir. No dia seguinte a barba estará visível e crescerá em ritmo acelera

Triglicerídeos, para onde vocês vão?

Sinto o poder dos triglicerídeos, que comandam insanidades variadas em meu sangue e permitem que as pernas dancem assim mesmo depois de décadas congeladas. A uma taxa de 450 nem sei do que sou capaz, andando por aí como uma caldeira à moda antiga. Mas cuido bem deles, sempre que consigo ofereço-lhes uma feijoada ou salames gordurosos e sensacionais. Imagino o que poderia acontecer se fosse obrigado a perdê-los, e como nas perdas de amor já sinto o coração apertado e deficiente. Ficaria mau, egoísta, fraco, magro, nervoso, doente. Ou não saberia mais pensar, viraria destro, manco, torceria por outro time, gostaria de uísque, de caldo verde e brócolis, ficaria careca, impotente, mudo, cego, talvez. E se meu sangue for substituído, transformado, circular no sentido inverso, aflorar, esguichar e se esvair, e eu ali ficar, lívido, amarelado e frio caído sobre um leito de folhas? Melhor seria jamais ter provado tais venenos que sabê-los seus por toda uma vida e agora ser obrigado a deixá-los

Histórias Encaixadas - Parte 2: Favela

Era tarde da noite. Cleonice amassava algumas ervas, misturava alguns pós. Velas acesas por toda parte, cheiro de fuligem, um aspecto bastante sinistro no barraco de madeira. Revirava os olhos, como que em transe, e balbuciava sons incompreensíveis. Assustados, todos ao redor tinham muito respeito por seus poderes. Estavam ali presentes os chefões do tráfico e os policiais do posto de vigilância. Deviam mesmo a ela e seus feitiços a conquista de algumas bocas à facção rival, sem nenhuma baixa entre os aliados. Os rivais, porém, ou foram cortados à bala ou queimados na “churrasqueira”, que era uma área de execução no alto do morro. Colocavam o bandido preso em uma pilha de pneus e ateavam fogo. Dona Cleo, como era chamada, deu um grito terrível e entregou a um dos PMs presente uma fita métrica: a esposa estava grávida e passava mal, corria o risco de perder a criança, o soldado buscava ajuda. - Pega essa fita, mede a perna dela e vê quanto pesa. Se der mais de dez quilos ela está com fe

Histórias Encaixadas - Parte1: Natal

Em pé, praticamente em todas as esquinas, nas lojas e mercados, Papais Noéis variados: altos, baixos, anões, magros, gordos. Roupas novas, gastas, vermelhas em diversas tonalidades, barbas volumosas, ralas, compridas, aparadas, imperiais ou modernas, gorros curtos ou compridos. Nenhum, porém, igual ao que circulava nos meus sonhos. Eu vinha sonhando com um mesmo Papai Noel há várias noites, um sonho repetitivo e obssessivo com o mesmo sujeito, nas mais estranhas situações ele sempre acabava aparecendo. Aquele era perfeito, como os desenhados por Norman Rockwell, padrão Coca-cola, e me perseguia pelo cenário que fosse. Isso era o que havia de estranho e assustador. O Papai Noel dos sonhos é aquele que mora na Lapônia, mas não hesitava em aparecer no banco do carona, num jogo de sinuca ou numa piscina imaginária. Pode parecer estranho, mas fiquei com medo dos velhinhos de vermelho, e sair de casa nesta época do ano tornou-se algo bastante aflitivo. Não pude evitar completamente as lojas,

Pessoas e Árvores

Uma ou outra árvore são altas, enquanto algumas são baixas. Se umas e outras pessoas estão altas, enquanto algumas ficam chatas, outras são divertidas, mesmo sendo altas ou baixas. Nas árvores os galhos crescem, nas pessoas o nariz e as orelhas também não páram de crescer. Uns têm folhas, outros cabelos, uns seiva, outros sangue, uns casca, outros pele, uns têm raízes, outros criam raízes. Árvores são firmes, pessoas não. Pessoas andam, árvores não. Para saber a idade de uma árvore é preciso cortá-la, para saber a idade de uma pessoa é só perguntar, Ou vice-versa.

Haircut com bolo

Fui cortar o cabelo, sábado era o único dia que dava tempo, meu cabelereiro agora tinha salão próprio e o corte era com hora marcada. Escolhi logo o primeiro horário, que não tem movimento. A coisa mais detestável é cortar cabelo em pleno movimento de sábado à tarde, com velhotas fazendo as unhas, peruas tingindo o cabelo, pessoas fofocando, correria de lá para cá. Bem cedo costuma não ter quase ninguém, dá até para ir de short, camiseta velha e chinelo, coisas assim. Não fui propriamente esculhambado, nem mal vestido se considerarmos a situação, estava com uma bermuda nova e uma camiseta surrada, sandália. O que piorava a situação era a barba sem fazer há muitos dias e o cabelo enorme, despenteado (quando, nesta situação, faço a barba, o cabelo parece ficar ainda maior, aí acabo deixando a barba acompanhá-lo por alguns dias). Era um aspecto indigente-limpo, para quem não me conhecesse. Bom, posso dizer que a primeira surpresa do dia foi ver que todos estavam vestidos com roupas extrav