Histórias Encaixadas - Parte1: Natal

Em pé, praticamente em todas as esquinas, nas lojas e mercados, Papais Noéis variados: altos, baixos, anões, magros, gordos.
Roupas novas, gastas, vermelhas em diversas tonalidades, barbas volumosas, ralas, compridas, aparadas, imperiais ou modernas, gorros curtos ou compridos.
Nenhum, porém, igual ao que circulava nos meus sonhos. Eu vinha sonhando com um mesmo Papai Noel há várias noites, um sonho repetitivo e obssessivo com o mesmo sujeito, nas mais estranhas situações ele sempre acabava aparecendo.
Aquele era perfeito, como os desenhados por Norman Rockwell, padrão Coca-cola, e me perseguia pelo cenário que fosse. Isso era o que havia de estranho e assustador.
O Papai Noel dos sonhos é aquele que mora na Lapônia, mas não hesitava em aparecer no banco do carona, num jogo de sinuca ou numa piscina imaginária.
Pode parecer estranho, mas fiquei com medo dos velhinhos de vermelho, e sair de casa nesta época do ano tornou-se algo bastante aflitivo.
Não pude evitar completamente as lojas, fui incubido de comprar vários presentes para a família. No shopping, cruzei com alguns Noéis e fui mesmo perseguido por um que teimava em me entregar um folheto de lanchonete. Encurralado entre duas filas da praça de alimentação, ele conseguiu me alcançar e enfiou o tal folheto no bolso da minha camisa, então piscou estranhamente o olho.
Consegui escapar dali, olhei em volta e ele tinha desaparecido. Terminei normalmente as compras e fui para casa.
Mais tarde, quando despi a camisa para dormir, um papel caiu no chão, era o folheto. Abaixei-me para pegá-lo e reparei que havia algo rabiscado ali. Curioso, li o seguinte:
"Eu conheço você e sei o que quer. 23h em frente à saída principal, esteja lá"
Procurei meu relógio, já passava de meia noite. O que significava aquilo?

No dia seguinte, um domingo, voltei ao shopping para procurar o sujeito. Como saber qual dos Noéis era? Fui até a lanchonete que ele estava divulgando na véspera, tinha sido contratado apenas por um dia, através de uma agência de serviços temporários. Anotei o nome e o telefone da agência, estava bem assustado.
Passei a tarde no zoológico, desenhando bichos. Quando cheguei em casa, o porteiro disse que um senhor tinha estado ali à minha espera por horas, e deixara um bilhete.

"Não adianta tentar fugir, é assunto do seu interesse. Ligue para mim"
Um número estranho de telefone completava o bilhete, sem assinatura.

Subi correndo e telefonei. Do outro lado, apenas risadas. Comecei a falar a xingar e uma voz rouca disse:
- Então Você ligou. Esteja em casa hoje à noite.
A voz desligou e fiquei ainda mais nervoso. O que fazer?

Fui à delegacia, mas pouco podiam fazer se não havia uma ameaça concreta. Procurei um vigia mais parrudo aqui do prédio e ele topou ficar escondido lá em casa, equipado com um taco de baseball, se acontecesse algo estranho ele poderia ajudar na defesa.
Coloquei uma faca automática no bolso para garantir.

A noite ia se arrastando, e nossos nervos cada vez mais tensos, imaginávamos as intensões mais bizarras. Então pouco depois das 11 o interfone anunciava a chegada do nosso papai noel.

Pelo olho mágico ele parecia ainda mais estranho.
- O que quer comigo?
- Você é quem deveria saber o que quer comigo.
- Chega dessa história. Quem é você?
- Papai noel
- Ora, vá se foder! Pode ir embora, não vou abrir a porta.
- Seu mal educado, se eu for, não volto mais aqui.
- O que tem aí nesse saco?
- Abra que eu mostro. É tudo para você.
- Não mesmo. pode se mandar.

Vi quando cruzou o corredor e tocou a campainha da vizinha em frente. Corri para o interfone, precisava avisá-la antes que abrisse a porta. Foi tarde demais, quem atendeu no 703 foi Noel.
- quer falar com alguém? Hohoho...
- seu canalha, o que faz aí?
- vou mostrar umas coisas a ela, se ela acordar. Hohoho...

Telefonei para a delegacia, era natal e assim que um policial estivesse disponível atenderiam ao chamado. Enquanto isso, o vigia tentava falar com o porteiro da noite, sem sucesso.
Saímos armados com facas e taco, atravessamos o corredor, entramos no apartamento aberto. Não havia mais ninguém ali.

Encontramos um frasco caído no chão, dentro dele um cheiro de vegetais velhos. No rótulo apenas escrito à mão, com tinta esferográfica "ruivo". Nenhuma pista a mais. Talvez uma tintura para cabelos? Parecia um vidro desses de xarope.

Tranquei bem a porta e nada de estranho tornou a acontecer naquela noite. No dia seguinte, bem cedo, o vigia interfonou dizendo que o carro da vizinha desaparecera, o porteiro da noite devia ser cego, não reparara.

Dia 26 precisei trabalhar, sou meio escravo de mim mesmo. Encontrei um envelope branco à minha espera na portaria, dentro dele uns tufos de cabelo e um papel da Leader Magazine, recortado do encarte: promoções de natal. Certamente uma mensagem do amigo oculto. Nem era preciso ser adivinho para saber que os tufos eram da vizinha. Nada escrito. Fora deixado sob a porta antes do prédio abrir.

No dia seguinte, mais tufos e um bilhete:
"preciso falar com você. Anote o número do seu telefone neste envelope, jogue na lixeira aí em frente que eu ligo."
Imediatamente avisei a polícia, desta vez atenderam, a coisa ficara séria. Cercaram o quarteirão, vigiaram a lixeira por 3 dias e nada aconteceu.

Não houve novos contatos, o telefone que eu tinha era de um orelhão em Madureira. Passei a andar apreensivo e nunca mais fui o mesmo. Passei a me sentir responsável pelo destino da garota do 703.

Chegou o reveillon, o ano novo trouxe muito trabalho, estive fora do prédio por uma semana. Quando voltei, por acaso entrei no elevador junto com a vizinha raptada, linda e faceira como se nada tivesse acontecido. Ela parecia confusa quanto aos dias em que estivera desaparecida, dizendo que estivera ali, trabalhara, nada acontecera de anormal. Como se sua memória tivesse sido apagada.
Perguntou se eu não tinha notado algo diferente na sua aparência, respondi que parecia mais magra. Depois disso, nunca mais conversamos.

Isto aconteceu há alguns anos, e o mistério nunca foi solucionado, nem o criminoso descoberto. Ele ronda minha vida e meus sonhos desde então, e todos os Natais fico trancado em casa.

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