Histórias Encaixadas - Parte 2: Favela

Era tarde da noite. Cleonice amassava algumas ervas, misturava alguns pós. Velas acesas por toda parte, cheiro de fuligem, um aspecto bastante sinistro no barraco de madeira.
Revirava os olhos, como que em transe, e balbuciava sons incompreensíveis. Assustados, todos ao redor tinham muito respeito por seus poderes. Estavam ali presentes os chefões do tráfico e os policiais do posto de vigilância.
Deviam mesmo a ela e seus feitiços a conquista de algumas bocas à facção rival, sem nenhuma baixa entre os aliados. Os rivais, porém, ou foram cortados à bala ou queimados na “churrasqueira”, que era uma área de execução no alto do morro. Colocavam o bandido preso em uma pilha de pneus e ateavam fogo.
Dona Cleo, como era chamada, deu um grito terrível e entregou a um dos PMs presente uma fita métrica: a esposa estava grávida e passava mal, corria o risco de perder a criança, o soldado buscava ajuda.
- Pega essa fita, mede a perna dela e vê quanto pesa. Se der mais de dez quilos ela está com febre. Aí joga esse pó dentro do olho dela.
Parecia incompreensível, instruções do além, mas ia tentar. Desse no que desse.
O preço da consulta: fingir que não via o movimento do tráfico. Tudo bem, isto ele já fazia, mas cobrava uma taxa com a qual não poderia mais contar.

Dona Cleo, na verdade, era uma farsante. Aprendera com a avó uma infinidade de truques e encenações, e vivia disto. A avó, por sua vez, fora discípula da Tia C., famosa na década de 1920 pela sua feitiçaria, que também era trambique.
Com seu físico esquálido, seus olhos amarelados e esbugalhados, o cabelo desleixado, conseguia um efeito ainda mais assustador. Bastava ter em estoque bichos estranhos, ervas, cachaça, velas, coisas assim, e pintar coisas obcenas e diabólicas pela parede para compor seu cenário.
Ela tinha diversificado seus negócios, fizera sites anunciando uma enorme variedade de misturas e preparados com poderes mágicos, tudo falso. Se alguém queria muito mesmo um produto desses conseguia o número de um telefone, e telefonava para receber o endereço do seu barraco.
Havia dois tipos de produto, ambos misturas para beber.
Um era uma mistura muito ruim, inócua, que levava a pessoa a vomitar, assim acabava pensando que disperdiçara a poção e às vezes até voltava para comprar outro frasco.
O segundo tipo era um misto de alucinógenos e calmantes, que deixava a pessoa em transe após algumas horas, uma espécie de catalepsia que durava mais de uma semana. Esta fórmula era dada a clientes que Dona Cleo julgava bem de vida e que valiam a pena roubar. Enquanto a pessoa estava em transe, os meninos limpavam a casa, quando acordava não sabiam direito quem eram nem o que tinha acontecido.
No dia seguinte tinha dois clientes, nem lembrava o que queriam conseguir, também foda-se, os produtos eram iguais mesmo.

O primeiro cliente era um homem de uns 50 anos que buscava uma fórmula-viagra, andava meio desestimulado. Entrou suado, amedrontado. Pagou os cem reais, recebeu o frasco tipo 1, era meio molambo e divertia Dona Cleo com seu jeito assustado.
Resolveu se divertir com ele e falou um monte de coisas sem sentido, disse que ia ler a sorte. Cortou o pescoço de uma galinha e verteu um pouco do sangue em uma tigela de porcelana, fez que lia algo no sangue, cara de susto, esbugalhou os olhos. O homem quase desmaiava de aflição. Ia morrer logo, logo de morte violenta, tinha um demônio na casa dele.
Vendeu mais um kit-descarrego e deu uma série de passes em troca do que ainda havia na carteira dele, o butim todo rendera mais de duzentos reais.
Quando o cliente saiu, cheirou um pouco do pó que recebia todos os dias, e começou a rir histericamente do otário.
Ainda ria bastante quando chegou a segunda cliente, nem deu ouvidos ao que ela queria, foi logo passando o frasco tipo 2. Recebeu o dinheiro, e sentia pelo jeitão da menina que ali tinha coisa de primeira.
Quando ela saiu, abriu uma janela e fez sinal a um dos meninos para segui-la. Agora era só descobrir onde morava.

O rapaz voltou mais tarde dizendo que a menina morava na Tijuca mesmo, num prédio na rua da 19ª delegacia. Tinha porteiro e câmeras, não conseguiu descobrir o andar. Daria para fazer o serviço se ela quisesse, bastava tentar o disfarce de entregador de farmácia.
Dona Cleo achou melhor deixar para lá, queria algo maior ou mais fácil, o negócio de limpar residências ou devia valer muito a pena, como na vez em que limpara uma velhinha em Ipanema, ou não apresentar dificuldade, como na vez em que limpara uma estudante que morava sozinha numa casa isolada. Não queria correr muitos riscos, afinal preferia trabalhar sempre que ir para a cadeia e já no dia seguinte havia três clientes marcados.

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