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Mostrando postagens de 2012

Rivotril

O consultório estava lotado, as velhas poltronas cor de vinho todas ocupadas por pessoas como eu, só que eu estava no final da fila e lá fora começava a chover intensamente. (Raios iluminavam a sala melhor que as lampadinhas chinesas do ventilador.) Na minha frente estava um menina de uns 20 anos de idade, cabelos compridos, pele bem clara, olhos escuros e – oh! Um desconcertante desalinhamento dos olhos. O olho esquerdo era visivelmente posicionado no rosto em altura diferente do direito, talvez um centímetro mais baixo. Ela parecia ter sido feita num daqueles moldes desencontrados, duas meias faces coladas com descuido, duas metades de irmãs gêmeas. Piscava para mim, ou para si, e o movimento fazia mudar a posição dos elementos da face, a expressão parecia girar, parar, girar, parar, como se os olhos fossem trocando de lugar. Girar, parar. Os raios acendiam a penumbra do olhar, hipnotizante olhar agora também aflito, injetado. Girar, parar. Náusea, enjôo, como qui

Augusto em apuros

Augusto esperava em meio à multidão que o sinal de trânsito ficasse verde para os pedestres, estava atrasado e ainda seria preciso andar quase três quarteirões em meio ao sol e à multidão do centro do Rio de Janeiro, o que era bastante desagradável para alguém com uma emergencial dor de barriga. Atravessando, encontrou no meio da pista com seu chefe, que retornava do almoço e o convidou para um café. Irrecusável. Foram tomar café em Madureira, viajaram no metro lotado até a estação Maria da Graça e de lá seguiram de taxi. Augusto já não aguentava, não sabia o que fazer, nem como controlar os espasmos que tentavam tomar conta de seu corpo. Depois do café o chefe pediu que Augusto comprasse alguns itens para o almoxarifado do escritório. Deixando a enorme lista de produtos e muitas recomendações com o coitado, retornou à empresa. Anoitecia quando ele chegou de taxi à sede da empresa, carregava sacolas cheias de acessórios para festas e os outros objetos desproposit

ilusão de alguma ótica

A pessoa que já não há, desmanchável travestida desejável, escondia tão suculentas carnes sob camadas de branca pele, que nem o batom Lancôme poupou dos canibais.

Tice já era.

Tice era uma menina frágil, porem bonita e misteriosa ao seu jeito. Certo dia, enquanto desenhava grades, pressentiu que era observada. Olhando ao redor, cruzou com os olhos de um homem alto, magro e de cabelos e barbas longos e misturados, um aspecto maltrapilho e desonesto. O homem sorriu, mostrando cacos de dentes podres e enegracidos, e uma ponta de lingual rachada e indecente. Tice sentiu medo e apressou-se a guardar seus materiais, mas eram muitos lapis e o processo demorou tanto que o andarilho tinha se aproximado. -        Menina, tinha reparado em seu pescoço, ele é lindo. Tão branco, longo e sedoso. Quero colocar minhas mãos ao redor dele, posso? -        Sim, não posso impedi-lo de olhar para meu pescoço, nem de desejá-lo, assim não faz sentido negar, mas seja gentil, por favor..         O homem apertou seu pescoço até sentir que não havia mais resistência, e o corpo de Tice pendia leve e sem vida de seus dedos. -        Desculpe, mocinha, você era

sonho semiótico

Estou andando sobre as águas de uma ensolarada baía, águas salgadas verde esmeralda. Lá no fundo estão os restos de um naufrágio, o cavername do barco como as costelas de uma baleia escura. Vejo os peixes que devoraram os passageiros, os ossos da tripulação, os cacos de louça. Vejo a sombra das nuvens oscilando nas dunas do fundo e cobrindo os despojos com uma mortalha de desolação. Agora chove. Agora é noite. Ando sobre abismos de peixes fosforescentes e animais desconhecidos, sinto frio, agora venta e há enormes ondas de alto mar e uma ilha. Ando sobre a ilha que não parece acabar, é dia novamente e alguns anos se passaram desde ontem, e a ilha vira continente, eu viro conteúdo, e o que faço transpira significado.

D - os exibidos

Os faisões emplumados de amarelo e vermelho berrante circulavam ao redor da sala, fazendo-se presentes por toda parte, só perdendo em exuberância para os pavões, que espremiam-se exibindo os rabos em leque. Pousados nos lugares mais altos estavam abutres e urubus, sombrios e solenes, à espera de que tudo desandasse lá em baixo e realmente houvesse vítimas com que se ocupar. Gordas galinhas cacarejavam em alto volume e aqueciam ovos únicos, postos quando eram jovens e agora já visivelmente decadentes. Papagaios verdes batiam as asas e gritavam palavrões horríveis. Em meio a tudo isso, ia forçando passagem uma cinzenta, simples rolinha – mal conseguia ver o chão à frente, mal distinguia o caminho a percorrer. Mas ainda assim seguia obstinada, enfrentando a todos com determinação. Não importa que não fosse tão espalhafatosa, tão elegante ou tão faladora, estava feliz com a imagem que tinha de si mesma. Precisava chegar o quanto antes ao banheiro e depois fisgar um coquetel da vernis

primeira aula de modelo vivo

Ver por horas outra pessoa é como estar sentado no hall de um hotel onde vamos passar um tempo, começamos sentindo a maciez do sofá, o barulho incômodo do piso, admiramos os detalhes, reparamos nos vestígios dos outros hóspedes e imaginamos como foram produzidos esse ou aquele arranhão da mobília. Então olhamos em volta e percebemos os ocupantes dos outros sofás, também imersos em pensamentos, e estamos todos a desenhar o que vemos ou imaginamos, os muitos pontos de vista. E olhando melhor, estamos agora em outros espaços públicos, a cada quarto de hora mudamos todos de lugar. No final nenhum desenho se parece exatamente com o modelo, parecem muito com o que há dentro das pessoas - medos, hesitações, certezas, felicidade, as malas e mochilas. É isso, o corpo do modelo é o hall do hotel, o saguão do aeroporto, a estação do metrô.