Um blog de textos escritos de madrugada, ou mesmo pensados durante a noite, de coisas que provavelmente não aconteceram e outras idéias que andam pela cabeça.
- Tire a mão do meu nariz - Não dá, está presa. - Peraí, deixa eu cutucar... Pronto: saiu. - Nãonão, faz de novo. O que saiu foi o pé. - O que seu pé fazia no meu nariz? - Estava tentando passar, cheguei o nariz pro lado e ele escorregou, prendendo meu pé e minha mão. Agora o pé está livre, só a mão continua entalada. - Melhor tirar o nariz para você passar. Assim..assim, estique o braço..ok, livre! - Obrigado! Por falar nisso, seu nariz está cheio de poeira, veja como minha mão ficou suja. - Tem razão, assim ninguém compra. O escultor deixou aqui há anos, lá atrás tem as orelhas, quer ver?
Com a unha do polegar direito, crescida e suja, cutuquei a ferida. Forcei o canto da casquinha, que cedeu, e inseri a unha como alavanca, dolorosamente levantando e descolando. Saiu um liquido esverdeado, uma gotinha só, depois –ploc! – casquinha levantada. A ponta, do lado oposto, parecia unida à pele e foi preciso fazer mais força, finalmente saiu mas o esforço rompeu algo e o sangue começou a minar. O antebraço estava bem vermelho agora, as bordas do machucado eram esponjosas e arroxeadas, úmidas e quentes. Ofereci ao cachorro, que lambeu e lambeu, abanando o rabo. Coloquei a casquinha de volta e pressionei uns minutos, selei com bandaid para grudar de novo, para amanhã ter mais diversão.
Andava sempre dois passos à frente de sua sombra, para não cair no escuro buraco por ela demarcado, ameaçador. O buraco o seguia, profundo, onde quer que fosse, tentando engoli-lo. Na metade do dia não podia sair às ruas, ou se saísse, precisava usar poderosos refletores que deslocavam a sombra a pino um pouco para os lados, algo inconveniente. Preferia caminhar sobre as águas, que dissolviam a sombra, mas nem sempre havia um lago ou piscina disponível, e o mar não levava a parte alguma. No fim do dia, depois de tanto fugir de si mesmo, chegava-se perto de algum muro e o sol poente trazia a sombra para o seu lado. Aí entrava no buraco como quem entra pela porta de casa, e todo dia ficava lá dentro escondido esperando o tempo voar, a noite passar, sonhando com alvoradas de bolinhos de chuva com café. Isso foi há anos atrás.
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