Postagens

Mostrando postagens de 2011

O Quarto de Despejo

Antes havia ali uma porta, que foi fechada com tijolos e cimento antes de nascermos, de porta mesmo ficou só o contorno, a madeira pintada do portal. Vovó falava de um quarto de despejo, que funcionava como despensa e que não existe mais, pelas indicações deve ser o tal quarto emparedado. Imagino as paredes desbotadas, as prateleiras vazias, teias por toda parte, os ossos arrumados no chão,... A casa antiga tem muitas histórias, dizem que atrás daquela parede tem um quarto, e lá dentro mora a Dona Viterba. Nós conseguimos furar um buraquinho nos tijolos, junto ao chão e à madeira, e de lá sai um vento gelado e rescindindo a umidade e mofo. Tentei iluminar pelo furo, mas mal cabe a lanterna, ou seja, se ilumino, cubro, se descubro, apago. Pelo furo a escuridão parece ainda mais densa, dessas de cortar com faca, como se fosse cremosa e opaca. Se Dona Viterba estiver mesmo lá, deve ter aqueles brotamentos fosforescentes dos peixes abissais. A tal senhora era esposa do espanhol que constru

Trinta por dois

Os alunos não tinham canetas. Nem lápis, nem papel. Nem braços, só olhos, bocas e dedos, bem elementares assim. Perguntei sobre as caixas, eles não tinham caixas. Perguntei sobre as latas, nada de latas, nem ideias. Só artefatos digitais touchscreen, espelhos e contas.

a roupa nova do rei

- aí está nossa nova marca! O arquivo estava vazio. Mas não de conteúdo, de significação.

Entre sem bater

Encontrei esse estranho papel preso por ímã na porta da Frigidaire vermelha do meu irmão, que há vários dias não dá noticias. “A geladeira comprei em um brexó na Lapa, estava novinha apesar de ser de um modelo tão antigo. Lembra a geladeira lá da nossa casa de praia. Ela desde o primeiro dia funcionou maravilhosamente bem, apesar de algumas coisas estranhas que fazia, mas aquilo até lhe emprestava um ar de mistério sensacional e mesmo divertido. Na primeira semana, começaram a desaparecer alguns itens. Primeiro foi o açucareiro, logo em seguida a garrafa de groselha, um queijo, o frasco de catchup, salsichas..e as garrafas de água quase sempre amanheciam pela metade. De vez em quando alguma coisa ressurgia: o pacote de salsichas quase vazio, o queijo despedaçado, uma caixa de pizza sem a pizza, e assim por diante. Incidentes assim aconteceram ao longo do primeiro ano. Então começaram a aparecer os objetos gelados. Esses sim, eram inexplicáveis: um pé de tênis Conga anos 80, novinho, u

Erro

A assistente gritou um lamento, foi a última vez que dela se ouviu. O mágico a serrara na caixa errada e o show se fora. Agora coelhos vermelhos saltitavam na poça de vida escorrida.

do além

- Alô? - Zeca, é você? - Claro! Euzinho. - Porra, por onde você andou? Estávamos desesperados atrás de você. Some assim sem dar notícias, diz que vai comprar cerveja no mercado e fica uma semana sumido. - Uma semana? Sério? - Qual é? Chega de canalhice, onde você está? - Desculpa, achei que o lance do Mercado tinha sido hoje, quer dizer, agora há pouco. É que o tempo aqui anda diferente, eu estou no além. - Além? Ora, vá para o inferno então! Que papo é esse? - É sério, pode procurar na internet. Já deve ter a noticia. Quando eu estava entrando no supermercado fui assaltado e um dos bandidos acabou disparando um tiro fatal. Procura aí, Mercado Mundial da Haddock Lobo. - Achei a noticia, ..diz aqui que um homem foi assaltado, e depois de ter descido do carro foi alvejado. Estava sem documentos, não foi identificado. - Por isso mesmo que eu liguei. Roubaram minha carteira junto do carro. O lance é que meu corpo vai ser enterrado como indigente se não for identificado, e sem iss

Entretenimento

Luciano enxergava cada vez menos, as manhãs iam ficando cada vez mais turvas e sombrias. Tropeçava, esbarrava, caía. Precisava de óculos novos, com certeza. Os óculos eram sua mais frequente despesa, quase todos os meses precisava trocar as lentes. Elas iam gradativamente perdendo sua eficácia e era preciso substituir antes que não conseguisse ir até a loja. Sem óculos não enxergava nada, sua própria mão virava um borrão alaranjado. Na ótica perto de casa era recebido como o melhor cliente, ganhava café e biscoitinhos, ouvia as fofocas do bairro, a todos conhecia pelo nome. Vantagens da idade, todos tratam bem os velhinhos – pensava. Nem era questão de grau, as lentes iam simplesmente ficando sujas. E ele não tinha como limpar, a sujeira não via, apenas sentia. Na ótica lavavam os óculos enquanto ele comia os biscoitinhos e cobravam por lentes novas (isso ele acabou sabendo por um ex-funcionário, mas tudo bem: no final saía enxergando, e com o papo em dia). Um dia a óti

Algo para os pés

A perna da garota espetava as mãos do vendedor, espetos de pelos cortados com barbeador, grossos, de depilação vencida. Enquanto afivelava mais um sapato, ele sentia os dedos sendo perfurados e sorria pelo prazer de tocá-la. Ambos estavam excitados, e ela provava mais sandálias, botas, tênis, enquanto ele imaginava sua língua perfurada em mil lugares, e prolongava os gestos deixando o dorso das mãos percorrerem os tornozelos enquanto manuseava os sapatos, chinelos, patins.

lugar nenhum

Dois barcos navegavam lado a lado sob o céu azul escuro do poente, tingidos de laranja, amarelo e vermelho, cortando águas já pretas da noite. Iam em alto mar, rumo a uma ilha distante, à qual nunca chegariam. Eles tinham pouca potência e lutavam contra as correntes de fundo, que teimavam em reconduzi-los quase ao ponto de partida tão logo conseguiam avançar. Estavam com pouco combustível, de palamenta desguarnecida de radios e remos (tinham sido trocados por comida há dois dias), sem sinalizadores, bóias ou cones pelos quais pudessem gritar. Apesar do arrasto, a superfície revelava-se lisa e convidativa e imprudentes marujos atiravam-se ao mar vestidos, atraídos pela música que acompanhava as trilhas de espuma. Os barcos eram unidos por uma estrutura de madeira, talvez um antiga escada, e quase todos a bordo tinham se ocultado no cavername quando veio o primeiro impacto. O barco da direita era agora uma esfera de fogo, pedaços de madeira e latão voavam em todas as direções e os dois

Algo vemelho e algo branco

Derramou o conteúdo intensamente vermelho de um cálice alongado sobre a brancura do corpo elegante de peixe. - Tintos não combinam, meu bem. (reclamou o animal, arfando) Ignorando o protesto, deitou-se desajeitadamente, esmagando o pobre ser sob seus quase cem quilos. As pernas, longas e musculosas, ocultas em camadas de roupas, escamas, meias, calças, saias, macacões, vestidos. Os tecidos em tramas fechadas tingiam a pele branca recheada de minúsculas veias azuis e vermelhas, algumas cortadas. Os músculos contraíam-se em plena atividade, embebidos em sangue morno e vibrante, movimentando firmes ossos um pouco abaixo da superfície. Havia inúmeros conjuntos desses no vagão apinhado do metrô, isso foi ontem.

D - os exibidos

Os faisões emplumados de amarelo e vermelho berrantes circulavam ao redor da sala, fazendo-se presentes por toda parte, só perdendo em exuberância para os pavões, que espremiam-se exibindo os rabos em leque. Pousados nos lugares mais altos estavam abutres e urubus, sombrios e solenes, à espera de que tudo desandasse lá em baixo e realmente houvesse vítimas com que se ocupar. Gordas galinhas cacarejavam em alto volume e aqueciam ovos únicos, postos quando eram jovens e agora já visivelmente decadentes. Papagaios verdes batiam as asas e gritavam palavrões horríveis. Em meio a tudo isso, ia forçando passagem uma cinzenta, simples rolinha – mal conseguia ver o chão à frente, mal distinguia o caminho a percorrer. Mas ainda assim seguia obstinada, enfrentando a todos com determinação. Não importa que não fosse tão espalhafatosa, tão elegante ou tão faladora, estava feliz com a imagem que tinha de si mesma. Precisava chegar o quanto antes ao banheiro.

Coisas que acontecem quando nao tem ninguem olhando-XVI

Trouxe a vaca ainda bezerro, escondida na minivan de Matilde. Estacionei normalmente, subimos pelo elevador de serviço. O consumo de leite andava alto demais, três filhos bebendo sem parar, criar uma vaca na varanda parecia uma solução absurda. Chegamos em casa e instalei o bicho no banheiro da empregada, ainda precisava preparar alguns detalhes, comprar feno ou ração, desviar algum cano de água, etc. Esses foram os piores dias, ela mugia sem parar, em alto volume, e precisei dizer aos vizinhos que Matilde estava com cólicas. Depois de instalada na varanda ela mugia baixinho, feliz, quase ronronando. (E Matilde ganhou diversos remédios para cólicas, deixados anonimamente diante da nossa porta). Agora a Vaca (esse é o nome da vaca) pasta feliz e acorda antes do nascer do sol para ser ordenhada por nossa cozinheira. Fornece muitos litros de leite, que consumimos e usamos na fabricação de queijos. Os queijos, minas, provolone, mussarela, produzimos no quarto que antes era o escritório. El

Anoitece dentro da nuvem

A criança puxa o fiozinho que sai da orelha esquerda, ainda curto e colorido, listrado azul e branco. O puxão é mais vigoroso que prudente e a dor provoca-lhe lágrimas. Seus pais têm longos fios escuros, todos os adultos são assim, não é justo que os fios das crianças sejam tão curtinhos – pensa. O pai certa vez disse que os fios não devem ser puxados nem cortados, é muito perigoso fazê-lo. Perigoso por quê? Mas agora que foi puxado, lá dentro não pára de doer. Será que vou morrer? Corre a contar aos pais. - Enxugue essas lágrimas, filho, ninguém more disso. No máximo vira do avesso, por isso que dói, por desgrudar o outro lado. Daqui a pouco a dor passa. - O que são os fios, pai? - Ah, os fios são uns sonhos.

Booktrailer Contos Noturnos

booktrailer do livro do blog com uma das histórias que já não estão mais aqui.. http://www.youtube.com/watch?v=n3jraa0R45M

Um outro Vôo

À esquerda um homem careca de quase 40 anos, porte de lutador, reza um terço branco em voz baixa enquanto o avião não decola. Atrás, a grávida peruana diz que está enjoada e prestes a vomitar. Diz isso algumas vezes, o que me faz encolher, receoso. À frente, uma executiva folheia ruidosamente algumas páginas grampeadas. O avião começa a se mover, manobra de posicionamento na pista, as aeromoças dão instruções de segurança. Não há ninguém realmente por perto, ainda que os vizinhos invasivamente aproximem-se através de seus sons. Lá fora a Grande Cidade parece parada, como parece a Lua quando vista de relance na noite, mas que imperceptivelmente evolui a um novo ponto no céu a cada vez que olhamos. Assim também é a Cidade, os prédios maiores são mais lentos, pesados, virando suas janelas para seguir o Sol poente. As casas mudam de lugar, sobem umas nas outras e ultrapassam os prédios baixos, engarrafando-se em morros e preguiçosamente deslizando contra os viadutos serpenteantes. Em tudo

Matrioshka

Dentro do pastel havia outro pastel, e dentro deste, um terceiro, depois um quarto, um quinto, e todos comíamos pastéis ocos, recheados de outros pasteis, cada vez menores até que chegamos à migalha, que é a menor partícula possível de massa. O chinês atrás do balcão esfregava as mãos de contentamento: - “quem achar papelzinho pode ler a sorte, né?” A migalha era o papelzinho frito, estava escrito: “vale um pastel”

Oferta! Casa em laranjeiras

Contra a luz seguro o copo de vidro colorido, movimento o liquido colorido dentro, caleidoscópios fluidos. Ouço gritos, gemidos, lamentos, choros variados das pessoas que estão amarradas no sótão, enquanto isso o líquido rosa flui pelos cristais amarelos, azuis e verdes iluminando-os de tons avermelhados, roxos e pretos. Hoje é apenas o quinto dia de veiculação, e lá vou eu coletar mais hóspedes. Está subindo um casal, serão dois de uma só vez. Adorei anunciar o atelier. Nunca imaginariam serem empalhados, revestidos de gesso e espalhados pela cidade, assim tão vulgares para serem eternizados.

além da portaria

D. Ermelinda conversava com seu cachorro, um collie fêmea, que conversava com um cachorro preto de raça indefinida, que olhava guia acima para a empregada da casa, que falava com D. Ermelinda. A tal falava sozinha, e bem o percebia, mas falava assim mesmo porque na casa do patrão precisava ficar o dia todo calada. - A senhora não sabe como são sovinas, blablabla, sabe o que eu vi a patroa fazer? Blablabla, e o porteiro interfonou muitas vezes até que blablabla.. D. Ermelinda, enquanto isto, falava com a cadela Mitzi sobre o jantar daquela noite e sobre as visitas do marido, que sempre deixavam a casa de pernas para o ar. - Quieto, Rex! Nada de fazer porcaria aí, espere, espere, pronto, pode fazer! (a empregada) colocou um penico atrás do cachorro, enquanto ele se abaixava) D. Ermelinda, interessando-se pela estranheza: - Isso é mesmo um penico? É tão colorido, azul purpurinado! - Bom, senhora, penico mesmo não é, é um chapéu que o patrão ganhou no baile de carnaval, mas é bem parecido.

Trade Marketing

- Renata, acompanhe por favor este senhor ao setor de tesouras? Ele é fabricante e está fazendo pesquisa em nossas lojas. - Por favor senhor, por aqui. Vamos subir ao terceiro andar. - Renata? A Loja não tem elevadores? Sou um pouco preguiçoso para escadas. - Temos sim senhor, mas só para descer. Na subida o elevador sempre transporta carga para reposição. - Tudo bem, vamos então. Mas não vai fazer mal a você? Reparei que está grávida. - Sim! Sim! É verdade! Estou grávida de seis meses. No final a ansiedade é tamanha que a gente quase arrebenta. Mas não me faz mal, subo e desço estas escadas umas vinte vezes por dia. - É menino ou menina? - Nenhum dos dois, é um Schnauzer. Sabe aquele cãozinho de barba? Apareceu no ultrassom. - Veja, chegamos às minhas tesouras. Vou ficar por aqui, obrigado e desculpe o trabalho. - Não há de quê. O senhor gostaria de água e café? - Por favor, aceito sim. Vou estender minha esteira aqui, trouxe uns biscoitinhos de arroz para acompanhar, que tal? - Humm,

História de um suspiro

Fui inspirado hoje. Lentamente passei por um belo e jovem nariz, desci por dutos aquecidos, ocupei dois grandes pulmões de alvéolos macios. Depois saí por onde tinha vindo, porém eu já não era mais o mesmo. Trazia em mim algo daquele corpo, na mesma medida do que de mim lá dentro teria ficado, ou talvez fosse eu mesmo, mudado. Expirado.

Pessoas de Vidro

Há pessoas de vidro perfeitamente esmaltadas e cheias de conteúdos coloridos como as garrafinhas de areia, porém lisas, frias e frágeis, a ponto de poderem se quebrar a qualquer movimento em falso, porém pesadas e robustas a ponto de pesarem como pequenos fardos. Elas parecem de plástico, ou mesmo de borracha, mas a impressão é falsa. Basta tocar.

estações erradas

Passados sete anos, seus sete anos de expiação, o destino voltava a ser-lhe favorável. Abaixando-se, pegou a nota de 20 e sorriu. Hoje não precisaria voltar à pé pela escuridão, nem comer os restos do restaurante da pensão. Viajaria de ônibus e compraria seu próprio jantar, depois seria uma latinha de cerveja e um café. Há sete anos não sentia tamanha esperança. Era hora de procurar um emprego, de dormir sobre lençóis limpos e colchões sem insetos, de repor os dentes que faltavam, de usar roupas do tamanho certo. Há sete anos quebrara tantos espelhos que sua vida regredira à idade média. No pior de seus dias fáceis não teria sido capaz de conceber a existência de tanta gente rudimentar como as pessoas ao redor. Tivera família, uma loja, funcionários, casa, carro, dinheiro no banco. Então os espelhos apareceram por toda parte, vindos sabe lá de onde, e começaram a cair sobre sua cabeça, cortando, separando, roubando, destruindo, até que se percebera miserável. Agora ia jantar e depois d

Coisa que acontecem quando não tem ninguém olhando - XV

Imagem
Azulejos brancos, chão úmido, luz fria e insuficiente, zumbido dos refrigeradores. Atrás do balcão, uma pessoa repugnante veste roupas brancas completamente encardidas e meladas de sujeiras impensáveis. Peixes fedem em bandejas de plástico em meio a escamas e gelo, criando uma atmosfera de horror na peixaria sombria. O Sr. Alberto pediu que embrulhassem uma sereia não muito fresca, que soubesse cantar. Planejava levá-la em uma viagem a Gdansk, para inspecionar submarinos poloneses, mas a tal sereia revelou-se tão abusada desde o princípio que da banheira não saía para lugar algum. Era verão e já na segunda semana o cheiro de maresia, que era quase palpável no pequeno apartamento, não era percebido pelo proprietário. Aos cheiros se acostuma, mas cheirava mal o Alberto, que há dez dias não tomava banho. Viveram aquele estranho romance até que aconteceu o inevitável: pelicanos invadiram o banheiro e a despedaçaram. Dela comeram quase tudo, sobraram só algumas postas dilaceradas que render

passatempo

Esfolei a perna há duas semanas, um ferimento leve porém extenso. Doeu bastante no início, e depois ainda mais, quando a cicatrização repuxava os pelos tornando quase impossível andar. Agora formou-se completamente uma crosta amarronzada e repulsiva que divirto-me em arrancar aos poucos. É algo irresistível, como estourar as bolinhas de ar do plástico bolha. Só paro quando de algum canto brota um filetinho de sangue que suja as unhas e traz de volta alguma dor. Já estou quase curado.