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Os Problemas de Leda

Leda não podia comer açúcares. Não podia comer sequer frutas ou comer leguminosas adocicadas, pois nascera com uma rara doença. Fora até aqui uma vida magra de sabores, salgada. Leda não sentia falta, como não nos falta do que não conhecemos, mas sempre sentiu desejo, uma incrível vontade de conhecer. Desse modo, idealizava como deveria ser o gosto, imaginou sabores multicoloridos, suaves, luminosos, inebriantes. Sua doença era tão rara que tinha sido diagnosticada em um punhado de pessoas em todo o mundo desde que fora descoberta, há mais de um século. Não há pesquisas, tratamentos ou especialistas, tudo o que se aprendeu sobre a enfermidade é que ela caminha ao longo dos anos para a cura ou para o agravamento letal. Leda, aos quase 30, estava curada ou condenada. Beber um copo de suco de laranja, para ela seria o mesmo que jogar roleta russa. Ontem, porém, resolveu descobrir seu destino. Comprou uma irresistível bomba de chocolate. O doce passou a noite sobre a mesa de jantar, bem no

Férias de Anjo

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Dois anjos conversavam sentados no canto de um bar irlandês, bebiam absinto com gotas de limão. Todas as outras pessoas que estavam por ali eram garçons, assim ninguém os via, o que lhes garantia grande privacidade. Falavam sobre as últimas novidades em maquiagem, sobre receitas da TV, sobre carros, futebol, mulheres, novelas, vestidos e charutos, papos de anjos bêbados. Sem sexo, trabalho ou preocupações, beber era o que restava a fazer na megalópole frenética.

No Front

- Ei, Reco, dá uma mão aqui! - Peraí, estou acabando de serrar. Toma! - É de alguém conhecido? - Não, é de um mensageiro do XV que esteve por aqui ontem. - Por que raios esta tenda precisa balançar tanto? - Estamos sendo bombardeados. - Já não consigo distinguir as explosões dos tiros. Aumenta o volume do rádio que está tocando Jimi Hendrix e eu costuro mais rápido. - É bom mesmo doutor, tem muito trabalho acumulado. - bom, menos um: o coronel está pronto. Agora é só vestir a farda e mandar para casa. Agora é a vez da enfermeira gostosa, vai ser difícil encontrar uma outra perna para ela.

crio-laboratorios

A pessoa abre os olhos, 20 anos depois, o primeiro caso bem sucedido de congelamento terapêutico humano. Estava curada de uma grave enfermidade que era considerada incurável quando se inscreveu como voluntária para pesquisas de criogenia. Historicamente era agora um marco, passara pela cirurgia e recuperação ainda inconsciente, e fora ressuscitada (ou reanimada, diziam). O lado ruim: ao longo das duas décadas tinha perdido seus pais, o marido, suas economias, o apartamento, o emprego. Não conseguia lidar com eletrodomésticos modernos, não conhecia computador, suas roupas eram fora de moda e estava careca. Sua rotina era de testes, comidinhas de bebê, fotos, exames, entrevistas. Expectativa de vida: mais 60 anos. Aos 40, tinha mesmo 60. Chegaria aos 120 com 100? Passava por tudo isso com uma certa melancolia e sonhava com geladeiras macias e lençóis molhados.

Idéias nada boas e algumas chaves

Está bem, vou contar como tudo aconteceu desde o início, para o senhor entender pelo que eu passei hoje. E ver que eu não sou louca, nem agressiva, pode perguntar a qualquer um. Estava em meu escritório, no alto de uma das torres do Rio Sul, calmamente admirando a vista enquanto aguardava a chegada de um importante cliente. Foi quando o telefone tocou novamente. Pela décima vez. Nas nove vezes anteriores alguém telefonava insistentemente e ficava em silêncio quando eu atendia. Mas havia alguém lá, eu podia ouvir a respiração. Eu desligava, mas a pessoa ficava ali prendendo a linha até cair a ligação, então a campainha tocava novamente. Eu estava quase perdendo o controle, quando a Margarete telefonou. Isso mesmo, na décima vez era ela, a diarista nova que meu marido contratou. - Alô? Dona Cecília? - Oh, finalmente consegui falar com a senhora! Isso aqui está muito complicado. - Tudo bem, não vou ocupar o tempo da senhora, é só para dizer que os moços já vieram buscar a geladeira. Da pr

viagens interplanetárias I

Aqui em Marte há um vulcão com quilômetros de altura, em cuja cratera quase caberia a França. É bastante estranho estar aqui, tudo assim tão vermelho de longe mas tão morto de perto. Marte faz a Lua parecer um Lego de gigantes.

Bagagem de mão

Avião de aspecto surrado, como uma mala gasta de tantas viagens. Cheiro de revestimentos antigos, couros vencidos, plásticos queimados, amarelados e pegajosos, como uma volta ao passado nos meus primeiros vôos. - O avião tem menos de 30 anos. O senhor aí, está preparado para abrir a saída de emergência, se for preciso? A porta pesa dezessete quilos. Leia as instruções por favor. E o senhor, está preparado? O pessoal de bordo é parte jovial e alegre, parte velhaco e surrado como a nave, uns em seu primeiro emprego, outros em final de carreira. O espaço é razoável, cabem as pernas dobradas sem esbarrar os joelhos na poltrona da frente, mas estranhamente os lugares pulam do a-b-c para o j-k-l. A limpeza é suspeita, tudo tem aspecto muito gasto, alguns pontos ao redor com vestígios de molho de tomate, que não é servido a bordo, partes com pinturas sobrepostas, partes desgastadas. Os elementos comuns: as pessoas. Essas, ainda mais comuns, populares, praticamente rodoviárias. Exceto pela men

Colônia de Férias

Tchick! Tchick! Pronto, lá se vai a última franja. Agora vamos aos rabos-de-cavalo..ah, a Renata nunca mais vai jogar esses cabelos por cima dos ombros! Tchik! Tchick! Mais um..Tchik! Ahaha, que delícia! E elas nem sentem nada, coloquei umas pílulas da mamãe na jarra de suco, todo mundo dormindo desmaiado. E ficando tosquiadas hahaha.. Bom, deixa cortar um pouco do meu também, e esconder a tesoura. Quando acordarmos vai ser desespero total. E o culpado só poderá ser o Bruninho, dessa vez a Tia enforca ele!

A Fera de Bom Jesus

Compadre, aqui na cidade só tem dois açougues e mesmo assim eles sempre dão conta do recado. Toda sexta-feira um boi é abatido e as pessoas antes disso já reservam para si as melhores partes. Eu tinha encomendado a picanha, até paguei adiantado ao Armando, e onde é que ela foi parar? Eu sei, encomendei filé, está faltando também. Foi tudo para o papo do leão. O Armando disse que vão matar mais um boi amanhã. Hoje ainda é segunda! Desse jeito, se não expulsarmos eles da cidade, vai faltar carne na próxima semana. Não sei como será, o maldito já está urrando de fome, já comeu tudo o que tinha à venda por aí. Não vai dar para esperar até amanhã para matar boi e botar no balcão não. Esse leão é muito feroz, disseram que já atacou um domador. Arrancou a garganta dele com uma patada, depois comeu o que conseguiu. Fera quando prova a carne de gente não esquece o gosto. Já reparou como olha para as crianças que vão lá espiar os bichos? Olhos de sangue! As pessoas estão com medo de sair de casa

Olhos Azuis

A menina fechou a porta do banheiro sem fazer barulho. Delicadamente, estendeu sobre a bancada um lenço branco bordadinho. Abriu um pequeno estojo de porcelana, colocou um pouco de água morna e arrumou bem no centro do lenço. Levou as mãos ao rosto em meio a um sorriso e experimentou algumas caretas divertidas. Segurou o olho esquerdo, com um gesto suave porém decidido, introduziu o indicador na lateral, perto do nariz, e com um barulhinho úmido – ploc – arrancou o olho. Colocou o globo no estojo, esfregou um pouco para limpar, o olho bom viu a água tingir-se de um rosa claro, como o do seu vestido, o olho de vidro olhava para ela lá do fundo. O espelho refletia o rosto adolescente, de pele lisa e sedosa, cabelos curtos tingidos de azul, longos cílios e o vazio onde se encaixava o olho. Era um buraco escuro, lá dentro escondiam-se o cérebro e todas as conexões que faziam a menina funcionar. Larissa passou o dedinho bem de leve ao redor do buraco, arrepio, era sensível como a sola dos p

Hospitalar I

Não, menina, o carro foi rebocado. Isso, r-e-b-o-c-a-d-o. Parei em frente ao hospital, não tinha nada sinalizado, já parei lá muitas vezes e hoje resolveram rebocar. Preciso que você traga o carro do seu pai até aqui, vou precisar sair correndo para da uma palestra. Quem está comigo? Da equipe você só conhece a Luciana. Ok, pode falar com ela. Olá, Joana, como vai? E o namorado? Outro dia vi vocês em frente ao shopping, um casal lindinho! Ah, aqui a coisa está preta. Como? Peraí Pronto doutora, use este. Olha, Joana, não é uma hora muito boa. Preciso fazer alguns procedimentos aqui. Falar com sua mãe? Acho que ela não pode mais atender, já iniciamos. Pode? Desculpe, doutora, pensei...tome o celular. Joana, ligue para o Beto, ele conhece umas pessoas do Detran. Para saber em que depósito o carro foi parar. Estou puta da vida. Isso vai me atrasar toda. Olha, preciso desligar. Quase fiz besteira aqui. Tudo bem, tudo bem, pode ir no sábado, agora desligue. Um beijo para você também. (desli

Hospitalar II

- O elevador de macas quebrou. E agora, como faço para descer este sujeito? - Ele está muito mal? Nós dois podemos levantá-lo para descermos no elevador comum. - Não dá, o cara é pesado demais. Olha só a pança. E o tamanho. Esses caras inertes pesam o dobro do que pesam quando estão acordados. - Podemos amarrar na maca e colocá-la em pé dentro do elevador, lá embaixo nós deitamos de novo. - Não dá, não cabe. Podemos também descer pela escada de emergência. Vai na frente escorando que eu vou atrás segurando. Agora foi! São só dois andares. - Porra, está muito pesado, não agüento mais escorar o sujeito. Vou sair da frente, vira para a parede que pára de descer. (tump!) Caralho! Ele rolou para o chão. Quer saber? Vamos deixar aí. Senão a gente vai se dar mal. Foi o pessoal da UTI que pediu para descê-lo. Acho que foi aquele médico novinho. Não posso deixar o paciente aqui, senão vai pegar para mim. Peraí, vou chamar uns caras para ajudar.. (voltando com 3 pessoas da equipe de faxina) É es

Hospitalar III

Alô? Alô? Pois não, enfermaria do segundo andar, qual é seu quarto? 228. É que o soro está quase acabando, precisa vir trocar. Sim senhor, vamos agora mesmo. Alô? Alô? Pois não, enfermaria do segundo andar, qual é seu quarto? 228. Eu liguei faz algum tempo, o soro já acabou, troquem por favor. Senhor, o soro já foi trocado há menos de 5 minutos. Está aqui na ficha. Deve haver algum engano, ninguém esteve aqui, nem trocou o soro. Vamos substituir novamente, senhor. Alô? Alô? Pois não, enfermaria do segundo andar, qual.. 228! Estou ficando irritado com você. Sabe muito bem qual é o meu quarto! Onde está o soro? Quem é a enfermeira chefe? Sou eu mesma senhor. Já substituímos duas vezes o soro em menos de meia hora. Da última vez a garrafa estava pela metade, eu mesma vi. Vocês devem estar indo ao quarto errado. Não senhor, nunca erramos. Está aqui, quarto 238. Eu estou no 228! DoisDOISoito. Porque não disse logo? Quer as coisas com urgência e dá o quarto errado. TocToc! Ah, até que enfim!

Romeu e Julieta

Na pizzaria pediram sabor goiabada com queijo, estranharam a garrafinha azul que chegou junto com a pizza. Era um frasco de vidro pequeno, de um azul intenso, escuro, com algum líquido vermelho que parecia preto na base. Cada um tomou um longo gole, e não voltaram mais para casa.

Lançamento do Livro Contos Noturnos

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Lançamento na Livraria Blooks, na Praia de Botafogo, dia 18/5 a partir de 18h, todos estão convidados! Depois disso o livro poderá se encontrado nas principais livrarias, vai custar R$19,00 e contém 36 textos extraídos aqui do blog, escritos entre dezembro de 2007 e novembro de 2009. Os textos pulicados foram retirados do ar, agora só impressos mesmo.

mais um dia, talvez

6 letras, esta é fácil. 7 chances. Então vamos lá, diga qual é a letra. A. Não tem A. Coloque isto por favor. (entrega a corda cor de palha, meio desfiada e malcheirosa) Como cheira mal! Desculpe, mas todas as cordas estão muito usadas, às vezes demoramos para recolhê-las e o cheiro não sai de todo. Deve espetar um pouco, está um pouco ressecada. Bem, letra E. Não tem E, tire os sapatos, por favor. Pode ficar de meias, está frio hoje. O que vai fazer com eles? Provavelmente um dos porteiros levará para a caixa de doações, estão ainda bem conservados. Apesar de visivelmente deformados, estão bons. É que eu piso com os pés abertos, os sapatos sempre gastam de forma desigual, e ficam entortados para dentro. O que sugere agora? A próxima vogal, I. Deve ter vogais. Tem sim, desta vez acertamos. Há duas letras I. _ i _ i _ _ Opa! A sorte começa a mudar! Não conte com isso, sorte não existe. É uma discussão que não se pode ter, não sou determinista. Bom, eu sou um pouco, mas sempre acho impor

A Mulher Invisível

A Mulher Invisível se move pelos corredores, de sala em sala, imaterial. Habita outras dimensões, este é o segredo, consegue penetrar em brechas a nós invisíveis. Fica escondida por baixo das dimensões usuais. Quando está invisível, não tem cheiro nem volume para nós, mas pode ver de lá tudo o que acontece por aqui, as dimensões são membranas e ela consegue ver através, como em um carro com películas escuras aplicadas nos vidros. Ou melhor, como se estivesse por trás de um espelho. Como é invisível não precisa se preocupar com roupas ou com maquiagem, a dimensão que utiliza é desabitada e isso é uma vantagem bem prática. É ruim não poder ser vista por ninguém, nem poder interagir com os colegas, só interage com o Homem Invisível. Acontece que o Homem Invisível só é visível para ela, e ele é insuportável. Como não tem com quem falar, fica alugando seus ouvidos com papos de negócios e de futebol, tem um bafo de bueiro e um aspecto repugnante. Vez por outra ela foge e se materializa do la

Os Outros

Cada um poderia ter sido muitos outros, e as pessoas poderiam estar organizadas assim em infinitas sociedades, infinitos grupos possíveis. Um novelo de gente, um emaranhado de braços, que talvez nem importem muito estar aqui ou ali porque todos giram em conjunto. Às vezes alguém encontra um lugar que é só seu, então faz algo notável que leva o todo a se mover um pouco mais para o lado. A massa vai acertando seus rumos e caminha ou rola sem direção ao longo dos anos, mas se move. A prova do movimento é a distância percorrida, as diferenças em relação ao passado. Omar poderia ter sido dentista, e ter feito algo errado na boca do diretor no dia do suicídio, algo que o fizesse ir para casa ao invés da empresa, um pouco antes, e talvez o tiro não tivesse acontecido. Omar poderia ter sido policial, e poderia ter revelado que aquilo tinha sido um crime disfarçado de suicídio, poderia ter sido motorista de ônibus, e ter batido no carro vermelho que partira em alta velocidade cruzando a pista.

Free Ride

Giro o volante 30 graus à esquerda e recolho o sorriso de uma estudante magricela. Todos os dentes, com um pedaço do maxilar. Hahaha. Acelero voltando à pista. Aciono os limpadores do pára-brisa, já olhando avidamente pelo retrovisor. Ninguém, noite escura. Os tons de vermelho sobrepostos no capô refletem neons e criam rastros amarelados dos postes de rua. A grade cromada do radiador sorri satisfeita, brilhante, o carro roda roncando alto, alimentado, espirrando retalhos de tecidos fumegantes pelos canos de descarga.

Nefertiti rumo a Botafogo

A pessoa sentada ali adiante bem pode ter sido uma múmia, tem o mesmo pé moreno, preto de putrefação, torto. As pernas finas, arqueadas em conjunto pelos séculos de enrijecimento. Os cabelos são pretos, o olhar é distante, o rosto é magro e anguloso, sombrio. Ela mexe nos cabelos, jogando-os sobre a pessoa de trás. Alguns tufos se desprendem e caem no chão sujo do metrô. Maquiagem pesada (máscara?) e dentes longos, amarelados, em um sorriso frouxo e inerte. A roupa é roubada, certamente quando passou por um quintal de São Cristóvão em fuga do museu. Dá para reparar pela bolsa Pink Panther, que não combina nada com os chinelos dois números maiores.

fantasmas

Vejo os fantasmas das pessoas vivas, porém mais novas, de quando eram de minhas relações, tal qual interferências das imagens de um televisor. São transparentes, etéreos, levemente colorizados, e fazem sempre os mesmos gestos, as mesmas cenas. Vejo as pessoas das imagens e não consigo acreditar que são as mesmas de minhas memórias, que o tempo tanto mudou. Os fantasmas, a seu lado, evidenciam suas misérias e as minhas. Parecem reclamar de decisões não tomadas, assombram arrependimentos e lembranças. Imagino as pessoas futuras, deitadas rígidas e com a pele amarelecida como cera, exangues. Assombram o tempo, os intervalos. Ontem estive à cabeceira de um morto em um cemitério triste, um hotel de mortos. Não o conheci em vida, nunca existiu para mim, nem vai gerar interferências. Meu écrã anda movimentado demais.

Vejo couros cabeludos ou não

Para onde foram os cabelos de tantos carecas? Cabelos crescem mesmo após a morte, mas precisam estar grudados ao corpo. Ou será que continuam crescendo mesmo sem ele? Talvez os fios costumem fugir à noite para poderem se alongar e misturar, para virarem coisas diferentes ou mesmo para coisificarem idéias. Talvez os fios roubem idéias, talvez eles contenham as idéias. O Café Villarino estava cheio de pessoas carecas hoje. Estranhamente, todos os clientes e garçons traziam o topo de suas cabeças desmatado e brilhante, exceto eu mesmo. Almocei sentado a uma mesa do canto, escondido, discretamente sentindo alguma condenação nos olhares. Como se houvesse alguma culpa nisso. Os cabelos devem ter sido requisitados pela cozinha, raspados um pouco antes de eu chegar. Pude ler isto, e uma intenção maléfica no olhar do garçom que se aproximava. O que havia atrás da bandeja, que ele tão estranhamente trazia colada ao peito? Imaginei um spaguetti de grossos cabelos à carbonara, cabelos boiando em t

Profissões: telemktg

Posicionei a cadeira de frente para a quina da mesa. Enquanto trabalho no computador de monitor pequeno e escuro, meu estômago é pressionado contra a ponta de madeira. Os pés estão dobrados para trás, forçando os joelhos, pois tanto a mesa como a cadeira são baixas demais para mim. A luz ambiente é excessivamente branca, refletindo-se nas paredes e papéis, e é gerada por poderosos refletores que aquecem o ambiente. Não há refrigeração, nem água para beber, as janelas estão fechadas. O suor escorre em minhas costas, braços, cabeça, molhando as calças e o chão. O som ensurdecedor de diversas britadeiras combinadas penetra os vidros sujos, bem como as vozes de mais de cem pessoas espremidas no cubículo de trabalho. Uso um fone pesado, desequilibrado e malcheiroso e faço ligações de telemarketing. Somos muitos e estamos aqui presos, é domingo a tarde e só poderemos sair quando cem pessoas disserem sim.

Coisas que acontecem quando não tem ninguem olhando – XIV

Esperava ansioso pelo carteiro. Dia após dia, uma longa espera. (quem na cidade espera por um carteiro?) Aguardava a chegada de um pacote grande, entrega especial, uma caixa de papelão com barbante, nomes rabiscados, carimbos. A encomenda: uma bicicleta com inúmeras marchas, com a qual finalmente realizaria o sonho de sua vida, que era viajar pedalando. Planejava já percorrer duzentos quilômetros no mês seguinte. A caixa enfim foi entregue, mas não era de papelão, e sim de madeira. Parecia ter séculos de idade, ao redor alguns textos impressos em alemão. Estranho, a bicicleta era coreana. Conferiu o número da remessa com a nota fiscal, o código de produto estava correto. Removeu alguns pregos e abriu a tampa lateral: tubos metálicos, pinos, corrente, gancho. Telefonou para o serviço de atendimento ao consumidor, após algumas horas conseguiu agendar a visita de um técnico (para substituir? Consertar?). Resolveu ver o que era aquilo. Era uma estranha máquina. Tinha quatro pés com um po