Os Outros

Cada um poderia ter sido muitos outros, e as pessoas poderiam estar organizadas assim em infinitas sociedades, infinitos grupos possíveis. Um novelo de gente, um emaranhado de braços, que talvez nem importem muito estar aqui ou ali porque todos giram em conjunto.

Às vezes alguém encontra um lugar que é só seu, então faz algo notável que leva o todo a se mover um pouco mais para o lado. A massa vai acertando seus rumos e caminha ou rola sem direção ao longo dos anos, mas se move. A prova do movimento é a distância percorrida, as diferenças em relação ao passado.

Omar poderia ter sido dentista, e ter feito algo errado na boca do diretor no dia do suicídio, algo que o fizesse ir para casa ao invés da empresa, um pouco antes, e talvez o tiro não tivesse acontecido. Omar poderia ter sido policial, e poderia ter revelado que aquilo tinha sido um crime disfarçado de suicídio, poderia ter sido motorista de ônibus, e ter batido no carro vermelho que partira em alta velocidade cruzando a pista. Poderia ter sido porteiro, e ter impedido a entrada do senhor agitado e suado que insistira em falar com o diretor.

Omar foi um matador profissional contratado pelo dentista, no dia do crime subornou o porteiro para entrar, atirou no diretor, plantou as provas para simular suicídio. Esta foi a versão aceita pela polícia para explicar os fatos, e a versão aceita pela empresa de ônibus para explicar um arranhão vermelho no para-choque dianteiro.

Omar foi um funcionário que transportava o dinheiro da firma todos os dias, recolhia o movimento do dia anterior das lojas e depositava no banco. Naquele dia, mesmo restando algumas coletas a fazer, retornou à empresa para examinar as contas. Ao chegar, ouviu tiros no pátio da empresa e fugiu à toda, achando que eram dirigidos ao seu carro. Quase foi atingido por um ônibus que cruzou a pista em altíssima velocidade e podia jurar que o motorista estava de olhos fechados. Depois ficou sabendo da morte do diretor. Esta foi a versão aceita pelo gerente financeiro, já que algumas lojas não foram visitadas.

Omar foi um motorista de ônibus que cochilou ao volante em plena Avenida Brasil, e em alta velocidade por pouco não esmagou um carro vermelho que saiu de repente de uma fábrica. Sorte que o sol refletido na lataria trouxe um lampejo que o despertou bem a tempo. Por acaso houve um suicídio ou crime na empresa bem naquela hora, deu no jornal, e ele ficou muito chocado no ponto final, precisou tomar umas doses para aliviar-se da tensão, esta foi a versão aceita por sua esposa para justificar o grande atraso.

Omar foi o amante do diretor, que apesar de casado era homossexual. Tinham alugado um consultório em um centro médico e um longo tratamento dentário justificava os encontros semanais. Mas descobriu que o diretor estava fazendo um tratamento de pele demorado em um consultório de Botafogo e, tomado de ciúmes, cancelou o encontro daquela semana. Ao invés de esperar em seu consultório, foi até a fábrica preparado para revelar tudo, e para fazer um grande escândalo. Mas foi surpreendido pelo espelho da portaria: estava um lixo, suado e decomposto. Tinha esquecido sua nécessaire e não sabia onde era o banheiro, uma situação desesperadora. Acabou voltando dali.

Omar foi policial, e na época trabalhava como porteiro para complementar a renda de assassino profissional e de motorista de ônibus. Aquele dia tinha sido agitado demais para ele, sobretudo porque sua arma tinha desaparecido e depois surgira nas mãos do diretor, com uma cápsula vazia e um projétil alojado dentro do chefe. Sorte que o número tinha sido raspado, e não haveria digitais. Saiu do trabalho diretamente para o boteco, de onde não saiu ainda.

Omar agora é diretor, mas começou de baixo, primeiro como vendedor ambulante, depois dirigindo ônibus e carros de entrega. Foi porteiro, vigia, entregador e gerente financeiro. Quase desistiu de sua vida quando teve um relacionamento tórrido com seu dentista, coisa de momento, queria ser assistente de consultório, mas então conheceu uma linda escultora e com ela se casou. As empresas do sogro prosperaram e ele foi promovido a diretor de operações para a América Latina. Omar é feliz, e da vida não tem o que reclamar, no entanto anda sempre armado, tem uma estranha sensação de perigo iminente.

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