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Mostrando postagens de dezembro, 2007

A Alma no Fundo do Olhar

Esta história é verídica, foi extraída da última carta de um suicida, que a deixou junto com um slide endereçados a mim. O morto em questão era meu amigo E.C., um dos melhores fotógrafos de moda do Rio há 10 anos, ainda lembrado com saudade por agências e produtoras. Seus trabalhos estavam nos catálogos das principais grifes e suas fotos guardavam uma vivacidade que superava o real. Sobre seus últimos dias de vida, dizia-se que enlouquecera. E.C. namorava (ou algo parecido) diversas modelos, e seu suicídio é ainda hoje atribuído ao desespero e depressão em que ficara após a morte de uma de suas garotas, alguns dias antes, em um trágico assalto. “Querido amigo, minha vida tem tomado rumos bastante desprezíveis. Tenho a certeza de que você entenderá meu sofrimento, e a crise em que me encontro, arruinado como pessoa e como profissional. Tudo começou com meu último trabalho, que era extremamente dasafiador. O briefing era criar um conceito de fotos para um catálogo de roupas darks, calças

Coisas que Acontecem quando não tem ninguém olhando - IV

Começou de repente, uma sensação de vertigem enquanto eu olhava ali para a tela do computador. Fechei os olhos por alguns instantes tentando não pensar, mas imagens continuavam surgindo dentro de mim e não havia paz. Depois consegui focar minha atenção em um zumbido que também incomodava, percebi que ele estava ali há bastante tempo, o que era aquilo? Uma idéia se formava, de que talvez eu estivesse mal. Seria estresse? Podia bem ser algo grave, algo congênito, alguma disfunção nunca percebida pelos médicos nem por mim, se alguém nasce doente pode nunca perceber porque não tem o referencial do que é viver em um corpo são. Um louco não sabe que está louco porque não pode se ver pelos olhos dos outros, ninguém sabe que está louco. As laranjas nem imaginam como é ser uma tangerina. Mas as pessoas vivem querendo ser outras, então usam disfarces e máscaras do que imaginam ser o outro, mas o outro mesmo acha tudo isso muito estranho, ele caricaturado não é ele de verdade, não tem essência ne

Olhar Pesado, Frio

Ela estava muito apertada para ir ao banheiro, mas não podia ir. Todos olhavam para ela com olhares pesados, ameaçadores, significando que não podia pensar em sair dali. Mas a vontade era muito forte, irresistível, e ela não conseguia enfrentar os olhares, não levantava um milímetro da cadeira. - Sabemos o que sente (diziam as vozes dos olhos pesados), mas não podemos fazer nada por você. Não nos incomode. E ela sentia a vontade passar a ser dor e a dor passar a ser desespero. - Nem pense. Prendia a respiração, cruzava as pernas, roía as unhas, lacrimejava. O frio que emanava dos olhares só piorava sua situação, então com um tremor sentiu a explosão dentro de suas calças e agora estava toda molhada e cheirava mal, suas roupas destruídas. - Vergonha! Olhou nos olhos pesados e frios: - Quero minha mãe! Ela estava faminta, e cercada por bandejas de delícias, mas não podia comer. Todos olhavam para ela com olhares pesados, ameaçadores, dizendo que não podia pensar em tocar na comida. Mas a

Uma Visita

Era um prédio desses que parecem castelos, com uma imensa fachada de tijolos de onde espiam três andares de grandes janelas de cristal. O prédio fica dentro de um amplo parque com jardins de flores e intermináveis gramados de um verde claro molhado pelas gotas de sereno. é primavera, e raios de sol matinais se infiltram entre as folhas das árvores traçando no ar zonas triangulares de luz onde flutuam poeirinhas douradas em redemoinhos imaginados. Lá no portão, uma placa de bronze com o nome do haspital, fica certamente em algum lugar da inglaterra. Um médico muito distinto, de bigodes pontudos e bem cuidados, calvo e marcial aguardava junto à porta de entrada. Com muita polidez, sou levado a conhecer as instalações, como se fosse algum inspetor, mas sinto que é assim porque visitas aqui não são muito comuns. As enfermeiras têm um estranho ar de pin-ups, que bem combina com o jeito antigo e formal dos médicos e internos. Atravessamos o pátio interno, com o sempre presente chafariz e ban

Domingo no Parque

Curitiba. Parque Barigui. Escolho para uma sombra ali próximo ao lago, sobre a grama verdinha, há por ali uns gansos disputando pedaços de pão que um garotinho joga, joga um e come um, os gansos quase atacando para pegar logo o pão inteiro. Faz um calor danado, 39 graus, algo incomum aqui, fico me sentindo um desses europeus jogados pelos parques alemães, tirei mesmo a camiseta para aliviar. Minha pele é de uma cor branco-rosada, se deixo a camiseta fico também com aquele bronzeado-pescador, nos braços e pescoço, com o peito e barriga brancos. Trouxe um violão, toco baixinho umas músicas do Cartola, umas coisas antigas que ando escutando agora que estou estudando música. Tristezas felizes. Há uma lenda aqui do parque, que nesses lagos mora um jacaré, o jacaré do Parque Barigui, que de vez em quando desaparecem umas crianças, teriam sido comidas pelo jacaré. Um pai certa vez relatou ter visto o filho sendo devorado, não ficou nenhum vestígio de luta porque o menino estava muito na beira

Um sonho

Acordei assustado: batida insistente na janela, metálica, insólita. 3 da manhã. Abri a cortina e descobri um cavalo de grandes proporções, castanho e brilhante. Melhor: luminoso. Percebi lá fora uma luminosidade de luz fria, azulada como a que ilumina o interior dos supermercados, e que de algum modo emanava do cavalo. Fiquei parado, apenas olhando, buscando algum sentido, e o animal procurava acomodar o corpanzil na estreita borda da janela, e esbarrava os cascos no vidro, e olhava bem dentro dos meus olhos, como se pedisse para entrar. Fosse uma mariposa, não hesitaria, não tenho aflições, mas aquilo era muito para mim. Depois, tenho certo medo de cavalos, pois se mexem demais. Nunca consegui montar, não tem volante nem guidom, para mim cavalos são como bicicletas altas com vontade própria, barulhentas e fedorentas. Mas acho lindos os cavalos, bem assim: num estábulo, num quadro, naquelas gravuras em água forte ou mesmo atrás de um vidro. Começou a se arrastar para trás, impaciente,

Inacabado

- É difícil pensar em uma saída mais honrada, precisamos mesmo desistir deste jogo. - De modo algum, desistir não. Somos heróis, nada de rendição. Se for preciso, enfrento qualquer um. - Mas todos já perceberam que não somos daqui, não conseguiremos nada. - Entre conseguir ou não conseguir e desistir, escolho tentar mais uma vez. - Você é quem sabe. Agora chega de discussão, que já estou ficando de saco cheio. - Olha quem fala... - É isso mesmo, você nunca consegue decidir! Por mais simples que seja! - A balconista observa dois senhores discutindo, estão cada vez mais putos, pensa. Um deles até está ficando vermelho, isso não está certo. Ela vai até a ponta do balcão, finge arrumar uma coisa aqui, outra ali, ajeita as etiquetas dos preços, pega um espelho de mão e começa a retocar o batom. Ela é muito bonita, uma gracinha de vinte e poucos anos, pele branca e olhos verdes, sabe que é assim e está sempre retocando algo. As feias são modelos mais práticos de mulher, imagina.

Uma Cena Horrível

A cena mais terrível que já presenciei aconteceu em um dos dias mais coloridos e felizes de umas férias de verão, alguns momentos após um acidente de carro. A mal iluminada estrada que liga Cabo Frio a Arraial do Cabo serpenteia em meio a lindas dunas e salinas e termina na entrada da cidade, em uma curva elevada, próximo à Prainha. No meio da pista, começando nos últimos metros da curva e se estendendo por quase meio quilômetro, há grandes blocos de concreto que impedem os carros de cruzar a pista rumo à praia. É uma curva fechada e estreita, e logo depois a estrada volta a alargar para permitir o retorno. Era uma linda manhã de sol, verão, e eu andava de bicicleta bem perto dali. Acabara de nascer o sol, nem sei porque tinha acordado tão cedo, fui pela estrada dar uma volta, o caminho conduz a uma vila de operários da indústria local que é um lugar arborizado e delicioso de passear. Quando cheguei à curva, havia ali um carro acidentado, um susto. Era um Volkswagen branco, desfigurado

Trânsito

10:00 Bom dia, ouvintes. É o helicóptero das notícias de trânsito! Estamos aqui para noticiar um terrível acidente. Esta madrugada, na avenida Presidente Vargas rompeu-se uma tubulação da Cedae, causando o afundamento da pista central e o alagamento do buraco. Os motoristas da manhã, desavisados, caíram no buraco, que àquela hora estimava-se já ter 3 metros de profundidade, e desapareciam. Logo caíram tantos carros que empilharam-se dentro da poça. O peso fez ceder uma das galerias do metrô, que desabou interrompendo o tráfego de trens nos dois sentidos. Há trens presos dentro dos túneis e os passageiros estão sendo removidos a pé pelos trilhos. Há pelo menos 10 feridos em estado grave e 5 mortos, os motoristas dos carros que caíram no buraco. O receio dos bombeirs é de que alguma tubulação de gás arrebente, eles trabalham com agilidade e pressa na remoção das vítimas e na drenagem da água acumulada. Toda a região está interditada. 10:30 Bom dia, ouvintes. É o helicóptero das notícias

Festa

Estávamos em uma festa, bem agitada e divertida. Você queria alguma bebida com abacaxi, mas isto era quase impossível por ali. Era uma casa antiga, um palacete decadente construído por volta de 1930, cheio de salas e quartos, escadas e jardins em variados níveis. Eu circulava aflito entre as pessoas que conversavam amontoadas por toda parte, e subia as escadas e descia as escadas procurando quem eu nem queria mesmo encontrar. Evitava qualquer um que pudesse querer me prender nessas conversas de festa, sobre nada específico mas que se arrastam como a voz dos bêbados, nisto até fui bem sucedido, driblei vários com elegância. Lá estávamos novamente juntos na varanda da casa, ambos vestidos de preto, e trocamos um beijo refrescante, há muito evitado. Senti sua boca quente e sua língua ansiosa, e foi uma delícia finalmente ter você só para mim naquele instante. Fazia muito calor, vontade de beber algo. E então tornamos a nos separar, a busca por bebidas de abacaxi reiniciou e não nos encont

Visão Canina

Dizem que os cães enxergam apenas duas cores, azul e amarelo. Como os cientistas descobriram isto, não faço idéia. E não imagino também o que eles não enxergam, será que vêem as outras cores em preto-e-branco, ou as convertem em tons malucos de azul e amarelo ou simplesmente não as vêem? Descarto a última opção, meu cachorro parece ver todas as coisas ao redor, e percebo alguma diferença quando olha para algo verdadeiramente azul ou amarelo: quando pintei a parede da sala em azul escuro, o cão ficou o dia seguinte quase todo sentado dando uivos leves e observando a perede. Fico assim com a primeira hipótese, de que o resto se torna uma escala de cinza. Também não consegui descobrir se percebem todos os tons e matizes de azul e amarelo, como dizia meu professor de desenho, há diversos azuis e amarelos, tantos que nem podemos nomear todos. Para as crianças são azul piscina, azul céu, azul claro e escuro, amarelo limão, amarelo bandeira, creme. Para os artistas, nomes mais sofisticados, A