Coisas que Acontecem quando não tem ninguém olhando - IV

Começou de repente, uma sensação de vertigem enquanto eu olhava ali para a tela do computador. Fechei os olhos por alguns instantes tentando não pensar, mas imagens continuavam surgindo dentro de mim e não havia paz.
Depois consegui focar minha atenção em um zumbido que também incomodava, percebi que ele estava ali há bastante tempo, o que era aquilo?
Uma idéia se formava, de que talvez eu estivesse mal. Seria estresse? Podia bem ser algo grave, algo congênito, alguma disfunção nunca percebida pelos médicos nem por mim, se alguém nasce doente pode nunca perceber porque não tem o referencial do que é viver em um corpo são.
Um louco não sabe que está louco porque não pode se ver pelos olhos dos outros, ninguém sabe que está louco. As laranjas nem imaginam como é ser uma tangerina.
Mas as pessoas vivem querendo ser outras, então usam disfarces e máscaras do que imaginam ser o outro, mas o outro mesmo acha tudo isso muito estranho, ele caricaturado não é ele de verdade, não tem essência nem verdade.
Abri os olhos e as coisas estavam todas de cabeça para baixo, de cabeça para baixo mesmo, nada de mesas no teto nem luminárias no chão, tudo estava onde deveria estar, menos meu olhar. Eu olhava para cima e via meu corpo sentado na cadeira, via a ponta do meu nariz, minhas mãos; olhava para baixo e via uns tufos de cabelo. Muito esquisito, como se meus olhos tivessem girado cento e oitenta graus em suas órbitas.
Levantei e tentei pegar meus óculos, o desespero crescia, a mão que eu queria usar não se moveu e a outra mão fez um gesto espelhado em relação ao que meu cérebro comandava. Eu tinha todos os movimentos, mas tudo rebatido como num espelho.
Procurei alcançar minha boca com a mão esquerda, foi preciso olhar para cima e querer mexer a mão direita para dar certo.
Quando tentei andar foi ainda pior, eu ia em frente com a sensação de andar para trás, não conseguia de forma alguma desviar dos móveis e terminei encostado na parede para não cair. Fui me arrastando pelas laterais da sala bem devagar, tudo de cabeça para baixo por ali, consegui ir até a minha cadeira e deixei-me cair (ou flutuar?) sobre ela, tornei a olhar ao redor, puro disparate. Devo estar em algum mundo paralelo, ou em uma consciência paralela.
O zumbido ainda estava ali, fora isso eram só umas inusitadas imagens de capas de chuva que vinham à mente, perturbadoras e repetitivas. Como eu me senti mal, ridículo, aquela tarde. O pessoal do escritório já deve estar comentando, e o pior é que não consigo vê-los, olho ao redor e vejo as máquinas, quadros de aviso, mas nada de pessoas, é como se eu estivesse sozinho por aqui. Mas sei que estão aqui, ouço seus ruídos, percebo que o zumbido nada mais é que suas vozes misturadas.
Tornei a ficar de pé, inquieto, desta vez fui até a janela. Pensei: se pulasse dali, de certa forma cairia para cima, isto seria algo bem próximo de voar. Fechei os olhos para imaginar.
O telefone tocou, era a secretária dizendo que eu estava muito esquisito hoje. Era um bom sinal ouvir a voz dela, as vozes pouco a pouco foram ficando mais claras, separadas, identificáveis.
Encarei a tela do computador e estava tudo em ordem, as planilhas onde deveriam estar. Alívio. Olhando para baixo vi pernas, joelhos, sapatos, cada coisa em seu lugar. A vertigem passara completamente, um zumbido fraco persistia.
Joguei no chão todos os papéis que estavam sobre a mesa, coloquei o teclado de lado, cochilei exausto.
Acordei vendo as coisas espelhadas novamente, inacreditável, quis gritar. Fechei e abri os olhos: tudo normal. Fechei-abri muitas vezes seguidas, a cada vez acontecia a inversão, já não era possível distinguir qual dos dois estados era real, nem qual a mão atenderia.
O mundo girava dentro de mim.Então tive certeza de que precisava tirar férias.

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