Uma Cena Horrível

A cena mais terrível que já presenciei aconteceu em um dos dias mais coloridos e felizes de umas férias de verão, alguns momentos após um acidente de carro.
A mal iluminada estrada que liga Cabo Frio a Arraial do Cabo serpenteia em meio a lindas dunas e salinas e termina na entrada da cidade, em uma curva elevada, próximo à Prainha. No meio da pista, começando nos últimos metros da curva e se estendendo por quase meio quilômetro, há grandes blocos de concreto que impedem os carros de cruzar a pista rumo à praia. É uma curva fechada e estreita, e logo depois a estrada volta a alargar para permitir o retorno.
Era uma linda manhã de sol, verão, e eu andava de bicicleta bem perto dali. Acabara de nascer o sol, nem sei porque tinha acordado tão cedo, fui pela estrada dar uma volta, o caminho conduz a uma vila de operários da indústria local que é um lugar arborizado e delicioso de passear. Quando cheguei à curva, havia ali um carro acidentado, um susto.
Era um Volkswagen branco, desfigurado, tinha certamente capotado, o asfalto ao redor todo marcado de borracha e salpicado de cacos de farol e vidro, devia ter acontecido ainda há pouco, no final da madrugada.
Não resisti à mórbida curiosidade de espiar de perto, vítimas não havia lá dentro.
As ferragens estavam impregnadas por um cheiro de vinho barato, cheiro muito forte, vi depois um garrafão quebrado perto do banco do carona, uma pista de que os ocupantes talvez estivessem bêbados. Os cacos estavam em uma poça arroxeada, que parecia conter bem menos líquido que caberia na garrafa cheia.
Por baixo deste odor, um outro mais seco, de sangue, este emanando das manchas nos bancos, reparei que estavam verdadeiramente encharcados em alguns lugares, e no chão se misturava um pouco com o vinho barato. Na porta branca, escancarada, muitas manchas de mãos ensangüentadas, imagino serem dos policiais ou bombeiros. Reparando melhor, o sangue estava em toda parte, como se tivesse crescido enquanto eu observava.
Vi que alguma coisa diferente brilhava dentro de uma pocinha sobre o tapete de trás, quando percebi já estava quase com a cara dentro do carro para espiar.
Um enjôo instantâneo, vertigem, por pouco não vomitei: eram 3 dentes fincados em um pedaço de carne ensangüentada, numa forma arqueada, com uma terminação branca de osso, um pedaço da mandíbula que alguém deixara ali para sempre.
A coisa sorria da minha morbidez e me fazia perceber quão absurdo e frágil eu também era.
Não tive nenhuma notícia sobre o acidente, nem ouvi falar dos passageiros. O veículo deve ter sido rebocado logo depois, quando voltei do passeio não estava mais ali, este vazio fez parecer que eu tinha sido o único expectador daquilo, fez parecer que era alguma espécie de visão, de delírio.
Nunca esqueci aquele sorriso, às vezes imagino que ainda está dentro daquela sucata, em algum ferro velho desses, esperando por mim, e que são os meus próprios dentes, uma espécie de agouro que traz arrepios.

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