A Alma no Fundo do Olhar

Esta história é verídica, foi extraída da última carta de um suicida, que a deixou junto com um slide endereçados a mim.
O morto em questão era meu amigo E.C., um dos melhores fotógrafos de moda do Rio há 10 anos, ainda lembrado com saudade por agências e produtoras. Seus trabalhos estavam nos catálogos das principais grifes e suas fotos guardavam uma vivacidade que superava o real. Sobre seus últimos dias de vida, dizia-se que enlouquecera.
E.C. namorava (ou algo parecido) diversas modelos, e seu suicídio é ainda hoje atribuído ao desespero e depressão em que ficara após a morte de uma de suas garotas, alguns dias antes, em um trágico assalto.



“Querido amigo, minha vida tem tomado rumos bastante desprezíveis. Tenho a certeza de que você entenderá meu sofrimento, e a crise em que me encontro, arruinado como pessoa e como profissional.

Tudo começou com meu último trabalho, que era extremamente dasafiador. O briefing era criar um conceito de fotos para um catálogo de roupas darks, calças de couro, espartilhos, botas, coisas assim todas pretas, sem cair em lugares-comuns.
Pensei logo de cara em algo meio sadomasoquista, fetichista, mas isto já estava sendo bastante explorado na mídia, era uma solução para caderno de moda de jornal. Tinha que ser algo maior, mais sombrio, mais exclusivo.

Busquei alguma inspiração nos darks da década de 80, nos vídeos, filmes, livros darks, músicas, até que esbarrei com a letra de uma das primeiras músicas da Siouxsie, mais ou menos assim:

“Are you still dying, darling?
Are you still still in pain?
Are you still crying,
Despite the morphine in your veins..
(...)
No more injections,
No more medications,
No more complications,
For you, darling...”

Encontrei a solução: ao invés de modelos, decidi que precisava fotografar cadáveres. A cabeça girava a mil por hora elaborando a idéia. Hummm...a produção disto seria bastante desafiadora, pois precisava conseguir cadáveres, vesti-los e fotografá-los. Aqui no Rio nem é difícil achar cadáveres, porém eu precisava de um que fosse de uma mulher bonita, jovem, magra. Isso, um cadáver bastava, mas precisava ser de uma modelo.

Acionei meus contatos, um fotógrafo sempre precisa conhecer muita gente e ser bastante político para produzir certas imagens, organizei forças-tarefa que percorreram funerárias em busca de corpos recentes, hospitais em busca de doentes terminais, polícia rodoviária em busca de vítimas de acidentes. Procuramos médicos legistas, enfermeiros, policiais, bombeiros.
Nada. Naquela semana só morriam mulheres feias, gordas, deformadas, normais demais.
Chegamos a correr para o hospital de Araruama para fotografar uma atropelada cuja descrição combinava com o que precisávamos, ela porém ficara com o rosto desfigurado e não serviu.

Todo este movimento andava mexendo demais com meus nervos e comecei a beber para me acalmar. Isso não foi lá muito bom mas trazia alguma felicidade. Mas eu já estava um caco, a busca se estendia pela segunda semana, o dinheiro para os informantes já se tornava um prejuízo considerável e meus prazos se esgotavam rapidamente.
O cliente, furioso, não podia atrasar o catálogo por causa da minha “idéia estúpida”, se eu não entregasse as fotos em uma semana ia ferrar com minha reputação, etc.

Quando tudo parecia perdido apareceu a Lana.
Ou melhor, desapareceu e depois apareceu. Lana era uma modelo perfeita para o catálogo, uma ex-caso minha, que agora ressurgia mortinha da silva para me salvar.

O telefone tocou, meu ajudante dizia:
- Sabe a Lana, aquela que ficava aí no estúdio falando de cabelos o tempo todo? Pois é, foi esfaqueada. Não, disseram que foi assalto, ninguém viu o que aconteceu. Mortinha mesmo. Não, o rosto está perfeito, a facada foi pela frente, direto no coração. Acharam ela com faca e tudo. Está lá no IML. Já falei com o Moreira sim, podemos ir até lá depois das 11 da noite. Hoje sai!
O ajudante estava bem feliz, afinal a morte de Lana salvava a pela dele também.

Moreira é baiano, funcionário do IML que conheci por acaso num boteco um dia desses e ficou logo sabendo do meu objeto de busca, imagina se eu perderia um contato assim? Como sempre, acabei conseguindo o que precisava e o Moreira conseguiu uma viagem de férias para Salvador.

Chegamos lá perto da meia-noite, entramos furtivamente e decidi fazer as fotos ali na sala de autópsias mesmo. A luz fluorescente dava um tom azulado bastante expressivo e para acentuar o clima usei um filme de cromo para correção de luz incandescente, que deixaria as fotos praticamente fantasmagóricas.

Lana estava linda, sua pele muito pálida era o contraste perfeito para o preto das roupas, o brilho do couro e o brilho do metal, os instrumentos cirúrgicos e respingos de sangue (cenográficos, estava tudo bem limpinho) completaram a produção.
Os cabelos pretos, cortados a meia altura do pescoço, que tinham sempre sido sua maior preocupação, repousavam tranqüilos ora sobre uma coleira, ora sobre a gola alta de um casaco. Os braços longos estavam estendidos ao longo do corpo, e pareciam feitos de cera.

A última foto, uma brincadeira, coloquei na mão de Lana a arma do crime: dobrei os dedos com alguma dificuldade, ela teimava em não segurar a faca, o corpo endurecia. Esta foto tirei mais de perto, da cintura para cima, o rosto dela aparecendo bem valorizado e a mão com a faca quase na diagonal.
Terminamos, dei um beijinho na sua testa fria, Moreira a cobriu. Passei um envelope para ele, que foi direto para o bolso e fomos todos ali no Bar Nova Capela beber alguma coisa para comemorar.

O catálogo saiu, as fotos ficaram sensacionais. Foi um dos meus melhores trabalhos, ganhei até um prêmio com as fotos da Lana. Foi a última aparição dela, um tributo, ultimamente não estava mais conseguindo trabalhos porque tinham surgido muitas outras garotas, o mercado se movimentara e ela ficara de fora.

As coisas são cruéis mesmo, Lana vinha tomando coisas pesadas, andava deprimida, na maior merda, morrer foi bom para ela. Pelo menos morreu por cima, já ia ser esquecida mesmo, pelo menos foi lembrada mais uma vez. Se não tivesse morrido a esta altura já estaria trabalhando como vendedora de shopping ou talvez morresse de overdose na semana seguinte e perdesse a chance.

O trabalho acabou há mais de um mês, mas continuo perturbado e não consigo trabalhar. Perdi meus principais clientes, perdi umas namoradas que acharam anti-éticas as fotos da Lana – “Vai me fotografar morta também? Tchau, vá se foder!”. Nem consigo comer direito. Só afundo em ondas de uísque, vodca, tequila.

Sabe aquela última foto, a da faca? Acabei não usando no catálogo, quando revelei os cromos vi que a faca não estava na mão, achei que podia ter caído enquanto eu preparava o tripé. Uma pena, a foto ficaria perfeita para o final, onde entraram os créditos, mas eu não pude usá-la ali.
Entreguei na época as fotos para a agência, não devolveram ainda, mas fiquei com esta aqui, e entendi que devo algo a Lana. Minha perturbação chegou a um nível insuportável e eu resolvi acabar com minha vida também, precisava deixar esta carta para ela, se ela puder ler de onde está. Sinto que enlouqueci.
Porque dizem que podemos ver a alma das pessoas no fundo de um olhar, e naquela última foto algo mais acontecera, os olhos dela estavam abertos. Como é ver o fundo de um olhar onde uma alma já não há? Ou há?”


Meu amigo deu um tiro na cabeça, depois de quebrar todo o seu equipamento e escrever esta carta. O tal slide que acompanhava a carta era a foto a que ele se referia..
Nunca antes revelei o deixara escrito para mim, parecia desnecessário.
Ontem, porém, encontrei este envelope na arrumação de meus papéis e só então olhei atentamente o rosto da Lana naquele slide.
Nos olhos, um reflexo bem nítido, a última coisa que Lana vira em vida gravada ali. Busquei a lupa e ali estava a silhueta do fotógrafo, com a faca, prestes a desferir o golpe.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

meus remédios

TEATRO DE MARIONETES

Os Problemas de Leda