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Mostrando postagens de 2009

bob

Meus pais disseram: pegue esta cabeça de robô e vá à luta! Assim o fiz: lá fora fui amassando ovos e sapos sem falar com estranhos. Não conheci ninguém, não tenho nada que me prenda ao mundo, família, casa, nada. Ando pelas ruas com o capacete verde, pelo grande "T" recortado eu vejo o mundo, ouço pelos fones os sons metalizados. Se algo me incomoda, desintegro - por dentro ou por fora, tanto faz, depende do dia e do ânimo. Desintegrei meus pais, a nossa casa, os vizinhos, a rua, o síndico, os amigos da escola, uns porteiros e uns advogados. Depois reapareceram e sumiram e tornaram a voltar e a ir, sempre acontece quando as dimensões se cruzam. Faz muito calor na cabeça mas o capacete eu não posso tirar, senão cortam-se os circuitos e não sei o que poderia acontecer depois de tantos anos. Tenho medo de modelos novos, mas a ferrugem chegou e é questão de sobrevivência.

Livro Contos Noturnos

37 textos acabam de ser removidos aqui do blog, eles serão publicados em livro pela editora Escrita Fina no primeiro semestre de 2010. Não adianta por enquanto procurar outros livros ou o site da editora, é uma editora nova que vai ser lançada em março. Escrita fina é um selo de literatura jovem de um grupo editorial que é também responsável pelo selo Tinta Negra e pela editora Ao Livro Técnico.

nuvens de chiclete

Fumo alguns centímetros de fumo chocolate com menta no cachimbo curto marrom claro enquanto o fumo faz pensar em balas e taças de vinho do porto e em sorrisos que podem ser tão enigmáticos aqui quanto nas reproduções da Mona Lisa. O que é Mona? Talvez tenha a ver com a unidade, talvez com única (estéreo x mono). Mas sorrisos reproduzidos da Mona a vulgarizam, popularizam, desgastam sua imagem como a das inspetoras de escola ou trocadoras de ônibus. Por que está Lisa? Ou é Lisa, como a Minelli ou uma dessas cantoras? Nome pop com certeza. Podia ter sido Cindy ou Madonna, que aliás até remete também a obra de arte italiana. Mas uns sorrisos como o dela é que são raros e talvez misteriosos. Aromas imaginados de menta circulam pela fumaça lembrando coisas assim.

Pff...

Um show horrível, músicas destas de bar, trilha sonora para beber à luz de velas. Ao redor, casais estranhos. Procuro imaginar o crânio da moça sentada à mesa da frente, a música não ajuda. Umas taças de vinho espantaram o frio e as inquietações, fizeram esquecer os salames que sei ver pendurados ali na cozinha. Nada além. Imagino poesias e pessoas que escrevem e seus crânios e ossos e as carnes que os revestem molhadas de chuva ao som de alguma música mais decente.

Package

Aterro do Flamengo. Quarta-feira. Trânsito incrivelmente fluido, íamos todos a quase 100, carros mudando de faixa e se misturando sem se encostar, quase um balé visto de dentro o carro vedado, apenas o ruído da ventilação e um cd do Pixies tocando baixinho. De repente, um cobertor embolado no meio da pista, compacto, alongado, quase um embrulho. Desviei bruscamente, um estranho pressentimento, uma impressão de que havia algo enrolado ali. A sensação esteve latente durante todo o dia, desagradável. 16:30. Sexta-feira Mesmo caminho, mesmo silêncio, agora Echo tocando Killing Moon, balé de carros a toda velocidade. Como todos os dias. Num instante o pressentimento voltou, sutil como uma lembrança de infância, e eis que um homem resolveu cruzar a pista em pleno trânsito. Ruído de freios, buzinas, ele deixou cair algo na pista antes de completar a corrida. Olhava preocupado para um cobertor embolado no meio da pista, apenas pude vê-lo de relance mas poderia jurar que era idêntico ao anterio

Amanhecer

Sentira-se meio descarrilhada hoje, estranha desde que acordara e vira os chapéus planando sobre a grama do jardim da frente. Devia ter fechado as cortinas no dia anterior para que não precisasse vê-los, mas os barulhos da noite a assustavam sobremaneira, assim gostava de poder contar com a luz do poste se infiltrado pelos vidros. Amanhecera um dia ensolarado, uma luz que suspendia poeirinhas pelo ar. Os primeiros sons foram de um canário, de um vendedor ambulante de loterias e de um caminhão barulhento. Então três sombras passaram e tornaram a passar, contornos distintos de chapéus antigos. Foi até a janela, lá estavam eles, executando um vôo-dança. Clara estava vestindo apenas uma camisolinha de seda e apesar disso sentia um calor insuportável no quarto. Por onde andava, o calor a seguia como que irradiado por seu próprio corpo. Estranho, se estivesse febil sentiria frio. A geladeira estava aberta, quase vazia. Sobre a mesa uma grande bagunça, cascas de ovos, farinha por toda parte,

Gostosuras ou Travessuras?

Andava apressado para buscar o carro no estacionamento do MAM, já era fim de tarde e eu estava um pouco atrasado. Quando descia a larga rampa da passarela sobre o Aterro, cruzei com a Xuxa Fake. Já a tinha avistado em duas ocasiões: uma ali no centro mesmo e outra na Barra, dançando no sinal de trânsito entre os carros e depois pedindo trocados aos motoristas. Agora subia apressada, no rosto um sorriso triangular que dizia “Sou louco sim, se quiser tirar uma foto custa baratinho” ou “Qual é o problema? Também preciso sobreviver”. Xuxa fake é um homem por dentro de um tipo de roupa que a apresentadora de verdade usava há uns vinte anos atrás, imagino se desde esta época o sujeito se traveste. Há um homem em Copacabana que só veste pijamas, sai a qualquer hora só com a roupa de dormir, trabalha vestido assim, anda de metrô vestido assim. Imagino que deve dormir nu. Depois (parece mentira, em Copacabana mesmo) cruzei com um fusca colorido dirigido por um palhaço. Presos no trânsito éramos

E se fosse logo ali?

E se ninguém gostasse do amarelo? Precisaríamos repintar coisas demais. E se ninguém gostasse do c, do p, do x? Precisaríamos inventar outras letras para substituí-las no discurso. Ainda assim, não deixariam de existir. Habitariam o fundo de alguém, raros e preciosos. E se os dedos fossem moles e não conseguissem apertar as teclas, será que as teclas existiriam? E se ao invés de letras tívéssemos apenas sons? E se no país dos cegos as letras sumissem? E se os ciganos cegos pudessem ler as espinhas e rugas ao invés das mãos? E se não houvesse o que pegar, o que apontar, o que escrever, Os dedos precisariam encontrar outras utilidades. E se os olhos fossem quadrados, e não fosse possível rolá-los nas órbitas, Teríamos pescoços musculosos de tanto virar a cabeça. Usaríamos óculos quadrados, com a lente pequena. Por que mesmo os óculos têm os dois lados iguais? Cada lente poderia ser num formato diferente, uma redonda outra retangular, De cada lado, um rosto. Uma pessoa diferente conforme

Self healing

Olhei para minhas mãos sobrepostas, o polegar direito pressionando com firmeza o indicador esquerdo, estranha dormência na mão toda. Removido o polegar, vi a cabeça do prego, prateada, quase sumindo pela ponta, que era de um amarelado pálido, um tanto estranho e insensível. Comecei a puxar com as unhas do outro indicador e do polegar e aos poucos o corpo prateado deslizava para fora. Limpo e brilhante, 8 centímetros de comprimento, a ponta ligeiramente torta. O dedo era menor que o prego, mas não houve sangue algum. Houve sim uma extirpação de algum fantasma, algum tormento que nem sei qual foi, como um vodu desfeito.

um pouquinho de Depeche Mode

I´m taking a ride with my best friend I hope you´ll never let me down again

Imóvel realmente imóvel

O apartamento estava em escombros. Eu nunca havia estado em um lugar assim antes e agora percorria os aposentos sobre tábuas rangentes e descoradas do piso, cercado por paredes mofadas e descascadas. Junto aos cantos, emaranhados de fios saíam dos rodapés embolados e confusos, tudo bem velho. A cozinha sombria não me convidou a entrar. Vi apenas a geladeira meio branca meio enferrujada e ladrilhos azuis rachados, poeira, muita poeira. E teias de aranha por todas as partes, e alguns potes de vidro com comidas podres, verdes, esbranquiçadas. Móveis velhos, amontoados nos cantos, roupas ensacadas sobre eles, sacolas de supermercados que já nem existem mais. Um sofá, não, dois, de um couro desbotado e puído, pés de mesa sem a mesa. Suspeito de ratos, de baratas, traças, lagartos, escorpiões, aranhas, morcegos. Um quarto abandonado, coisas caídas nas prateleiras, papéis rasgados pelo chão, parecia ter sido revistado por uma patrulha da gestapo. Cheiro ruim, ar pesado, olhos ardendo. Um banh

AeroÔnibus

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Transporte aéreo coletivo Fundada em 2008, a Empresa Interamericana de Ônibus Aéreos ltda é a única companhia aérea em todo mundo a oferecer o transporte realmente coletivo de passageiros. Agora é possível viajar grandes distâncias em pouquíssimo tempo e a um custo realmente baixo, com toda a segurança de uma viagem aérea comum. Enquanto os aviões convencionais de uso doméstico transportam uma média de 200 passageiros, nossas aeronaves estão equipadas para o transporte de até 500 almas sem bagagem. O segredo está na eliminação das poltronas, que são mais volumosas que confortáveis. Os aeroônibus realizam viagens de curta duração, em trechos de grande movimento de passageiros. Deste modo, ninguém se cansa de ficar em pé. Espaço e segurança: fixados ao teto, suportes elásticos prendem-se à cintura dos viajantes, delimitando o lugar que cada um pode ocupar e evitando quedas. Graças a esta inovação não é preciso segurar em parte alguma, e os braços ficam livres para transportar as bagagens

Concentração em Laranjeiras

Lá no meio do bloco um vampiro avançava sem disfarçar sua natureza vampiresca. Um bêbado perguntou que sangue ia sugar naquela noite, um grupo de bichas ofereceu seus pescoços a ele, mas não queria nada com álcool nem homens. Queria o pescoço de uma bailarina que vira de relance e agora desaparecera engolida pelos foliões. Era muito difícil passar pelas pessoas, o bloco não se movia e a multidão pulsava ao som incompreensível de marchinhas misturadas. Sua fome só fazia aumentar, não se alimentara ainda e nem sinal da bailarina. Sua capa era puxada, esticada, rasgada. Suava muito em seu terno preto, caríssimo, comprado na Inglaterra há mais de cem anos: depois daquilo ia certamente para o lixo. As roupas andam tão caras hoje em dia! Foi arrastado para cá e para lá, nada. Parecia tudo normal para a multidão. Cruzou com alguns diabos, com alguns monstros, todos bem à vontade por ali. Um inferno. Ao menos se a música estivesse boa poderia relaxar um pouco e cair na folia também, quem sabe

Dirigindo no escuro

Eu dirigia por uma estrada vazia, em alta velocidade, era noite alta de uma terça-feira de janeiro e estava chovendo bastante. Levemente sonolento de tanto dirigir desde o Paraná no dia anterior, via as luzes passando vermelhas e brancas, desfocadas, ritmadas. O carro era um prolongamento dos meus braços. Quase como se eu o estivesse vestindo. Então senti que vestia mesmo meu próprio corpo, como se de algum lugar lá dentro eu coordenasse as ações dos braços, dos olhos, das pernas, que moviam, olhavam e pisavam algumas partes mecânicas: carro e corpo unidos, articulados. Uma armadura ou uniforme, eu lá dentro em algum lugar. Foi estranho perceber esta independência, eu interno ao corpo, consciente dos comandos, das engrenagens. Desejei subir, ver o que havia lá fora. Atravessei o teto do carro como se ele não estivesse ali. Via a estrada deslizando em grande velocidade. Elevei-me mais e mais, observando a noite estrelada. Enquanto isto, meu carro cruzava a pista e voava pelo barranco la

Pesquisando Tesla

Sebastião tem um pé podre, o esquerdo, e anda com dificuldade apoiando-se apenas na ponta dos dedos. Já tentou inúmeros tratamentos, agora simplesmente desistiu. Sequer troca as bandagens. Acorda ainda de noite, veste a mesma calça a semana toda, a camisa do dia anterior, calça as botas, come um pãozinho com café bem forte e vai para o trabalho. Fica ali pela ponte o dia todo, aluga cavalos e equilibra-se na lama misturada aos escrementos fétidos. Cobra 10 reais por meia hora, como tem muitos cavalos e há sempre turistas por ali, fatura o sufuciente para viver com relativo conforto. Às cinco em ponto conduz seus animais de volta ao pasto, espanta as moscas de sua ferida e toma um banho frio. Depois, abre um dos livros de física que herdou do pai e retoma suas pesquisas das descobertas de Tesla, o famoso pesquisador da eletricidade e real inventor do rádio e do raio-x. Já montou um exemplar de sua famosa bobina ali mesmo na sala e agora busca concluir a pesquisa interrompida pela morte

Coisas que acontecem quando não tem ninguém olhando - XIII

Coleciona estrelas cadentes pela noite como quem coleta conchas na areia da praia. Estrelas sem grandeza, com ou sem cauda, corpos celestes frios ou incandescentes, como quem busca amores por aí. Guarda-as dentro de si, desmaterializadas, queridas. Esta noite há nuvens carregadas no céu, sequer a lua se pode ver. Ele desespera, estica braços, pescoço, olhares. Sabe que deve parecer muito velho, doente, triste hoje. Precisa de suas estrelinhas para viver. Mas que diferença faz? As estrelas, sabe que continuam a cair e amanhã espera encontrá-las acumuladas numa órbita qualquer. Quem sabe não acha uns satélites junto?