Amanhecer

Sentira-se meio descarrilhada hoje, estranha desde que acordara e vira os chapéus planando sobre a grama do jardim da frente. Devia ter fechado as cortinas no dia anterior para que não precisasse vê-los, mas os barulhos da noite a assustavam sobremaneira, assim gostava de poder contar com a luz do poste se infiltrado pelos vidros.

Amanhecera um dia ensolarado, uma luz que suspendia poeirinhas pelo ar. Os primeiros sons foram de um canário, de um vendedor ambulante de loterias e de um caminhão barulhento. Então três sombras passaram e tornaram a passar, contornos distintos de chapéus antigos. Foi até a janela, lá estavam eles, executando um vôo-dança.
Clara estava vestindo apenas uma camisolinha de seda e apesar disso sentia um calor insuportável no quarto. Por onde andava, o calor a seguia como que irradiado por seu próprio corpo. Estranho, se estivesse febil sentiria frio.

A geladeira estava aberta, quase vazia. Sobre a mesa uma grande bagunça, cascas de ovos, farinha por toda parte, pedaços de papel, cascas de laranja. O forno estava ligado com um bolo grande lá dentro.
Okok, era mesmo seu aniversário, mas não conseguia imaginar como eles tinham descoberto isto. Desde que chegara de Portugal, há noventa anos atrás, podia contar nos dedos as vezes em que houvera festas de aniversário.
Seus pais eram contra festejar, festas consumiam os poucos recursos de que dispunham e acendiam o desejo de transgredir sempre presente nos corações dos jovens. Só o Natal escapava todos os anos, mais como um elemento do contrato social que por devoção.

Tomou um longo banho, penteou os cabelos ruivos e entrou em um vestido bem decotado, vermelho e aveludado. Olhou-se no espelho oval, uma linda cocotte. Aparentava os vinte anos que tinha no final da década de 1930, quando era normalista e jovenzinha.
Naquela época precisava inventar trabalhos na casa de amigas e reuniões sociais de diversos cunhos, sobretudo religiosos, para esconder aventuras e romances. Aplicou batom, blush, rímel.

Desceu os degraus aos saltos, dois ou três por vez, dando gritinhos e risadas. “Devo ter tomado alguma pílula a mais ontem”, pensava, divertida, e ao mesmo tempo pensava ansiosa nos beijos que roubaria do jardineiro (que só chegaria às nove). Ainda eram sete, e pensar no jardineiro trouxe a lembrança dos chapéus esvoaçantes do jardim.

Abriu a porta para que pudessem entrar. Na cozinha, o café já estava servido para quatro pessoas. No centro da mesa, um bolo de chocolate coberto de velas, tantas que quase não deixavam ver a deliciosa cobertura. A geladeira estava fechada, o forno desligado, nenhuma louça suja (só usava descartáveis). O calor continuava, ela agora já irradiava luz, uma luz amarelada e quente.

As velas começaram a derreter antes de terem sido completamente acesas. Escorriam sobre o bolo, gotejavam na mesa. A toalha da mesa incendiou.
O fogo se alastrou rapidamente, queimou tudo na casa e em seguida nas casas dos vizinhos mais próximos. Então se extinguiu tão rapidamente como tinha começado. Tudo o que se via ao redor estava carbonizado, exceto quatro chapéus antigos que dançavam valsas imaginárias levados pelo vento.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

meus remédios

TEATRO DE MARIONETES

Os Problemas de Leda