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Aterro do Flamengo. Quarta-feira.

Trânsito incrivelmente fluido, íamos todos a quase 100, carros mudando de faixa e se misturando sem se encostar, quase um balé visto de dentro o carro vedado, apenas o ruído da ventilação e um cd do Pixies tocando baixinho.
De repente, um cobertor embolado no meio da pista, compacto, alongado, quase um embrulho. Desviei bruscamente, um estranho pressentimento, uma impressão de que havia algo enrolado ali.
A sensação esteve latente durante todo o dia, desagradável.


16:30. Sexta-feira

Mesmo caminho, mesmo silêncio, agora Echo tocando Killing Moon, balé de carros a toda velocidade. Como todos os dias.
Num instante o pressentimento voltou, sutil como uma lembrança de infância, e eis que um homem resolveu cruzar a pista em pleno trânsito. Ruído de freios, buzinas, ele deixou cair algo na pista antes de completar a corrida.
Olhava preocupado para um cobertor embolado no meio da pista, apenas pude vê-lo de relance mas poderia jurar que era idêntico ao anterior.


Segunda-feira, pela manhã

Notícias pelo rádio, um avião acabara de desaparecer dos radares sobre o atlântico. Depoimentos de um piloto, um técnico, um sindicalista, um parente revoltado.
Dirigia ansioso, os olhos espalhados ao longo das largas pistas e canteiros, nada a vista, nem mesmo no local dos incidentes anteriores.
Entrei no túnel, recheado de escuridão, trânsito parado. Ruído de estática. Então um silêncio mais profundo que a escuridão, frio, senti que o dia se apagava ao redor.
Eu nada podia ver nem ouvir, mas sentia que algo dentro do carro estava se mexendo. Percebi o movimento por algum deslocamento de ar ou de pressão. Era no banco de trás, e contínuo, algo pulsando e se arrastando.
Congelado de medo, tentei alcançar a trava da porta, mas ela não estava mais ali, tentei gritar e não conseguia, já não alcançava o volante nem os pedais, cercado de vazios.
Só conseguia perceber o lento arrastar da coisa. Estávamos só nós dois ali. O frio era úmido, pegajoso. Imóvel, senti quando os pequenos dentes começaram a trabalhar no meu braço direito, perdi a consciência.


Terça-feira?
Abri os olhos, uma fresta de luz, cheiro horrível. Dali podia ver um horizonte cinzento, pedrinhas, pneus enormes, ferragens. Aquilo tudo se movimentava em uma incrível e indizível velocidade.
Então compreendi: o embrulho era eu. O homem era eu. O frio e o movimento e os dentes eram meus,.desde o início.
Acelerei para esmagar e atropelar, incendiar e iluminar todos os eus.

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