Bagagem de mão

Avião de aspecto surrado, como uma mala gasta de tantas viagens. Cheiro de revestimentos antigos, couros vencidos, plásticos queimados, amarelados e pegajosos, como uma volta ao passado nos meus primeiros vôos.
- O avião tem menos de 30 anos. O senhor aí, está preparado para abrir a saída de emergência, se for preciso? A porta pesa dezessete quilos. Leia as instruções por favor. E o senhor, está preparado?
O pessoal de bordo é parte jovial e alegre, parte velhaco e surrado como a nave, uns em seu primeiro emprego, outros em final de carreira.
O espaço é razoável, cabem as pernas dobradas sem esbarrar os joelhos na poltrona da frente, mas estranhamente os lugares pulam do a-b-c para o j-k-l.
A limpeza é suspeita, tudo tem aspecto muito gasto, alguns pontos ao redor com vestígios de molho de tomate, que não é servido a bordo, partes com pinturas sobrepostas, partes desgastadas.
Os elementos comuns: as pessoas. Essas, ainda mais comuns, populares, praticamente rodoviárias. Exceto pela menina raquítica cheia de piercings no rosto, que é visualmente diferente.

A decolagem está atrasada, a todo instante chegam ônibus trazendo pequenos grupos de passageiros, recolhidos aqui e ali pelo aeroporto. Meus fones tocam “as we sleep” de Lou Reed e Laurie Anderson, música que combina com a cor local.
O último grupo chegou, há uma senhora em cadeira de rodas. Como o acesso é por escada, seis carregadores de malas e mecânicos tentaram juntos erguê-la, sem sucesso. Foi preciso utilizar uma empilhadeira, que deixou manchas de óleo e ferrugem na roupa clara da senhora. A cadeira foi amarrada junto à porta e a senhora à cadeira: vão viajar ali mesmo.
O sol vai subindo no céu, aumentando o calor alguns graus acima da capacidade de refrigeração, os passageiros suam, os cheiros pioram.

Cochilo. Acordo, motores. Enfim vamos decolar!

Gritos no banheiro, gritos femininos e pancadas na porta.
Aeromoça jovem: - Senhora, a porta está trancada, não consigo abrir por fora! Senhora, o que houve? Pode destravar, senhora?
Aeromoça velhaca chuta a parte de baixo da porta enquanto a jovem puxa onde pode. A porta destrava e se abre.
Senhora desdentada, histérica: - Deixei minha dentadura cair na privada, pisei naquela pedal e ela foi sugada, deve ter caído na cidade lá em baixo!

Lá em baixo já era Paraná. Chovendo dentaduras.
- Senhora, não se preocupe, ao dar descarga, o material não é lançado sobre as pessoas e sim recolhido ao esgoto químico.

Cheiro de óleo queimado, de táxi velho, de motor gasto. Microfonia no sistema de som, falhas de pressurização da cabine. Um avião feito de muitos aviões, cada pedaço com mil histórias.

Sobrevoamos Curitiba por quase uma hora, em círculos em meio a densas nuvens, vento e turbulência. Enquanto isso, escrevi o relato de uma viagem aérea de terror e colei na bandeja para o próximo passageiro ler.

Céu nublado, lá ia eu, ansiedades e cores na bagagem de mão.

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