Coisas que acontecem quando não tem ninguem olhando – XIV

Esperava ansioso pelo carteiro. Dia após dia, uma longa espera.
(quem na cidade espera por um carteiro?)

Aguardava a chegada de um pacote grande, entrega especial, uma caixa de papelão com barbante, nomes rabiscados, carimbos.
A encomenda: uma bicicleta com inúmeras marchas, com a qual finalmente realizaria o sonho de sua vida, que era viajar pedalando. Planejava já percorrer duzentos quilômetros no mês seguinte.

A caixa enfim foi entregue, mas não era de papelão, e sim de madeira. Parecia ter séculos de idade, ao redor alguns textos impressos em alemão. Estranho, a bicicleta era coreana.
Conferiu o número da remessa com a nota fiscal, o código de produto estava correto.
Removeu alguns pregos e abriu a tampa lateral: tubos metálicos, pinos, corrente, gancho.
Telefonou para o serviço de atendimento ao consumidor, após algumas horas conseguiu agendar a visita de um técnico (para substituir? Consertar?). Resolveu ver o que era aquilo.

Era uma estranha máquina. Tinha quatro pés com um pouco mais de um metro de altura, fixados um ao outro por hastes horizontais. No topo desta estrutura, um cilindro de ferro ficava encaixado. Do cilindro saía uma manivela e no centro estava fixada uma das pontas da corrente. A outra ponta estava conectada ao gancho. Completando o conjunto, argolas de ferro na parte de baixo dos quatro pés. Parecia-se com uma espécie primitiva de guindaste doméstico.

O técnico um dia chegou, mas falava alemão e ele não conseguia se fazer entender. Elevavam as vozes cada vez mais, quase gritando, vermelhos e suados, quando o homem de repente saiu. Voltou logo depois, arrastando o faxineiro, que ria bastante.
Prendeu os pulsos e os tornozelos às argolas dos pés.
(um novo equipamento de ginástica?)
Agora o faxineiro protestava, mas estava imobilizado. O técnico abriu a mochila e sacou uma faca dessas de fazer churrasco, e antes que alguém compreendesse o que planejava fazer, cravou-a na barriga da vítima, cortando suavemente de baixo do esterno até o umbigo.
Prendeu o gancho ao intestino e começou a girar a manivela, e o faxineiro se sentiu esvaziado e morto.
Limpou as mãos no jeans surrado e retirou da bolsa um livro, atirando-o ao colo do cliente paralisado: “Mesa esviceradora. Manual de uso. Português”. Ele não entendia nada daquilo, por que tanta gente comprava esse monstro se havia tantas coisas divertidas anunciadas no site? Depois ficavam assim, com essa expressão idiota no rosto. E mudos. Nunca conseguia uma gorjeta, saudade de seus tempos de entregador de pizza.

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