Carnaval Vermelho

A porta abriu com um gemido dos metais gastos, lá dentro já estavam algumas pessoas, fiz uma rápida avaliação antes de escolher o canto esquerdo.
Havia uma senhora loira com olheiras profundas, esta era bem mais baixa que eu e aparentava uma permanente ressaca. Olhava com desdém para a pessoa ao lado, uma menina alta e saudável, de cabelos pretos.
Na parede do fundo, junto ao espelho, havia um senhor careca e sorridente, usava óculos e camisa social branca, de mangas curtas, e uma bermuda bege e sandálias de couro. A senhora loira vestia uma camiseta preta justa e uma calça desbotada, a menina, um vestido verde florido.
Ao lado do senhor careca estava um homem bastante alto e magro, de pele morena porém não bronzeada, como a dos indianos, e cabelos pretos bem rentes, bigodes que pareciam postiços. Junto a este, uma criança de cinco ou seis anos vestindo uma fantasia de super herói. À esquerda deles estava eu então.
Subimos alguns andares, é difícil saber quantos, o prédio é muito alto e o elevador, lento. Lá dentro fazia um calor terrível, a abertura para ventilação era mínima, a máquina estava barulhenta e vacilante.
Chegamos ao quinto, aqui ficaram o herói e o indiano. Mais espaço, respiramos aliviados. A subida continuava. O senhor enxugou o suor do rosto com um lenço azul claro, o gesto lembrava meu avô, que sempre andava com lenços.
O chão tinha respingos e o espelho estava embaçado, estávamos todos impacientes e a subida continuava.

- Ai de mim! Vou para a cobertura, nesse passo não chego viva!
- Calma, chega sim. Não sei o que há com este elevador hoje, é sempre lento mas deve estar pifando de vez. É melhor todos descermos no meu andar, o décimo.
- Décimo? Pelo tempo que faz desde que saímos do quinto já deveríamos estar no mínimo no vigésimo.
- No vigésimo fico eu, mas já prefiro subir pelas escadas.
- Algum de vocês tem algo para beber? Estou me sentindo um pouco tonta.
- Tenho uma garrafinha de uísque, mocinha, mas duvido que mate sua sede.
- Se não matar, pelo menos anima a alma.
- Dá aqui um gole.

Bebemos toda a garrafinha, dessas de metal de levar no bolso, nem havia muito uísque mas foi o suficiente para criar um clima mais amigável. A menina tirou da mochila um pacote de biscoitos e um polenguinho, dividimos em seguida.

- Só falta alguém tocar violão.
- Eu tenho uma gaita aqui, posso tocar.
- Não, por favor não toque aqui dentro, estou muito aflita.
- Senhora, não fique aflita, aproveite para pensar em algo, todos sempre temos algo em que pensar.
- Humm.. Tenho medo de pensar muito. Depois meu uísque já acabou. Se pensar demais sem renovar pode vir a depressão. Sabe, eu era assim uma gata quando era da sua idade, mocinha.
- Ah, o tempo passa...
- É, e na minha época nem tinha essas raves, era psicodelismo mesmo, coisa mais cerebral que física, mas daí o físico acabava detonado. Eu tinha umas bochechas lindinhas, agora estão caídas. (enxuga o espelho, fica se olhando meio de lado)
- Eu não vou a raves, sou evangélica. Não faço nada disso.
- Ah, qual é? Estamos aqui nesse elevador estufa, prestes a desmaiar, e você vem com esse papo? Pensa que não vi você sair com os caras aí do lado ontem? Estava com a mesma roupa de agora.
- Meninas, não vamos nos exaltar agora que aqui já está quente o bastante.
- Cadê o 10?

Então ouvimos um guincho agudo, em seguida um barulho de metais batendo, e paramos de subir. Tentei abrir a porta, mas estava travada. Precisaria ter alguma alavanca para conseguir.

- O botão de emergência não funciona!
- Funciona sim, sua burra, ele toca dentro da casa do porteiro.
- Por que então ele não está aqui salvando a gente? Deve estar quebrado, não tem alarme!
- Socorro! Socorro!
- Senhora, fique calma, nós já vamos sair daqui.
- O senhor vá se foder! Socorro! Socorro!
- Sua mal educada! Vá se foder você, sua bêbada!

A menina chorava, a senhora gritava, o senhor suava, eu pensava em uma música do Arnaldo Antunes, meio poesia concreta, que não tem fim porque é circular.
Não é o que não pode ser que não é o que não pode ser que não é...
O que não pode ser que não, é o que não, pode ser que não, é...
Comecei a cantar baixinho.

O ar tornava-se rarefeito, como sempre acontece nas histórias onde há pouca ventilação e muitos narizes, e a senhora foi a primeira a desmaiar. Foi descendo junto ao encontro da lateral direita com o fundo, fechando os olhos.

- Será que ela morreu? Não está respirando.
- Não, apenas desmaiou. Se alguém tiver um palito podemos enfiar sob a unha dela para reanimá-la.
- Ou dar uns tapas na cara, também funciona nesses casos.
- O senhor ficou mesmo zangado com ela!
- Ninguém falou assim comigo antes. Tem certeza de que ela está apenas desmaiada?
- Estou sentindo cheiro de queimado, porra, só faltava um incêndio!
- Não é incêndio não, está saindo fagulha ali da luminária.
- Mas pode virar incêndio, e está queimando o ar que resta. Será que dá para consertar?
- Duvido, para isto precisaríamos cortar o fio, e ficaria escuro, não daria para emendar novamente.
- Posso iluminar com o celular.

O celular! Como não tínhamos pensado nele antes! Será que havia sinal? Tiramos os aparelhos dos bolsos e bolsas, o meu era o único que pegava.
Disquei o número dos bombeiros, prometeram enviar alguém com urgência, porém quando ia dar o endereço a bateria acabou. Minha bateria sempre acaba quando preciso. A menina e o senhor tentaram bater em mim, houve uma pequena briga.

- Você quebrou meus óculos seu filho da puta.
- Filho da puta é você seu velho escroto, só estava me defendendo.
- Agora não consigo enxergar nem os botões!
- Para que você quer ver os botões? Estão todos acesos, mas o elevador está parado. Pa-ra-do.
- Socorro! Socorro!
- Pare de gritar, menina, não agüento mais você! (o senhor já está descabelado, rasgado, sem óculos e tenta atacar a garota. Esta desvia e o golpe acerta o rosto da mulher desmaiada)
- Acho que agora você matou ela, o nariz está sangrando! Idiota, por que não fica quieto?

Mas o senhor estava descontrolado, talvez em algum surto, e para ficar quieto precisei amarrá-lo com uns trapos da minha camisa. Fiz uma mordaça de meia, minhas meias preferidas de futebol, apesar do mal cheiro. Depois de algumas horas ele se acalmou, talvez tenha adormecido.

- Se vamos morrer aqui, preciso confessar algo antes.
- Ah, pare com isto, ninguém aqui vai morrer num elevador. Não hoje.
- Você não reparou, mas já estamos aqui há mais de um dia, tenho controlado as horas desde que paramos.
- Não é possível, diria que estamos há algumas horas, mas isto é loucura.
- Estamos parados há exatamente vinte e cinco horas e dez minutos.
- O que você queria confessar?
- Sou evangélica mesmo, mas saí com os dois vizinhos. Juntos. Eles são uma delícia.
- Não precisa me dizer essas coisas. Só isso?
- Na verdade estou com muita sede, se não beber algo serei a próxima a desmaiar.
- Os únicos líquidos por aqui são sangue e suor, os dois são salgados e não dá para você bebê-los.
- Sangue dá, os vampiros bebem.
- Bom, prova aí.

A menina mordeu o pescoço da senhora decadente, lambeu o sangue que escorria, com expressão de nojo, mas lambeu.

- Você devia provar, tem bastante aí dentro para nós dois por vários dias.
- Deve estragar logo com o calor, mas tem o vovô também.
- Puxa! Como naquele filme do acidente nos Andes! Depois podemos tentar comê-los!
- Como você é porca! Dá um beijo aqui!
***

(dois dias depois)
- Não é possível, será que não repararam que um dos elevadores parou de funcionar?
- Quem repararia? Este é um prédio comercial, pelas minhas contas hoje é terça-feira de carnaval, estamos aqui desde sexta à tarde. Devem ter fechado o prédio e caído na folia.
- Então amanhã vão nos encontrar, no máximo na quinta-feira.
- Seremos presos.
- Estávamos desesperados!
- Eu ainda estou.
- Não consigo comê-los. Eles estão fedendo.
- Nem eu. Mas preciso de mais sangue.
- Olha, eu corto aqui com a unha, você bebe um pouquinho do meu. Depois eu bebo do seu.
- Ai! Calma aí!
- Sabe, estou me sentindo muito fraca, como se fosse desmaiar. Se eu desmaiar você vai me beber toda?
- Não, eu estou fraco também. Vamos morrer aqui. Como é o seu nome?
- Cláudia.

(quinta-feira)
Fomos encontrados desacordados dentro do elevador quando o prédio reabriu, Cláudia tinha morrido, assim como os outros dois passageiros, todos perfurados e sujos de sangue, magros e pálidos.
Eu sobrevivi graças ao antebraço dela, que era bem saboroso.
Meu advogado conseguiu responsabilizar o síndico pelo desastre, já que resolveu fechar o prédio por tanto tempo sem deixar vigias e sem inspecionar os andares e equipamentos.

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