Tarde-Mart2



Com o olho de pombo via coisas demais para sua compreensão, mas seu universo todo parecia contido na cena, então ok, vamos voar por ali. De um lado para o outro ia reconhecendo coisas e lugares, comia grãos à noite, vivia assim há meses.
Sabia que coisas havia além de sua compreensão, como a barreira invisível que o impedia de continuar voando para fora dali, via o céu, voava rumo a ele e batia em algo. Quanto mais rápido voava, mais forte sentia o impacto. Precisava sair dali a todo custo, estava enlouquecendo.

Tinha algum medo dos homens, lá no solo havia muitos deles, e empurravam gaiolas com rodas que iam enchendo de caixas, depois levavam as caixas embora, então chegavam outros homens e colocavam novas caixas na prateleira, uma coisa muito estúpida, nem conseguiam esvaziar nem encher o lugar.
Como os peixes, que bebem a água do mar e depois acabam virando água eles mesmos, ou como os aviões, que sugam o ar de um lado e sopram do outro, que lógica há? Se os peixes não bebessem água ficariam secos e virariam areia, e aí sim sugariam o mar, se os aviões parassem de soprar o ar conseguiriam ficar cheios como balões, e parariam de correr tanto.

Mas agora tinha um plano, ou melhor, dois: sairia dali disfarçado de humano ou de caixa.

Plano A: mergulharia em sua velocidade máxima na cabeça de um humano sem cabelos. Assim conseguiria entrar na cabeça dele, e ficaria lá dentro até passar pelas portas prateadas, depois sairia sem que ele percebesse, e estaria livre.
Plano B: se o plano “A” falhasse, daria um jeito de entrar numa caixa, ou num saco, de algum modo ficaria escondido numa das gaiolas com rodas, e seria levado para fora, então estaria livre!
Desafio: fazer isto quando houvesse apenas uma pessoa por ali, que não queria ser visto.

O tempo passava sem que surgisse a oportunidade ideal, sabia que era uma questão de paciência, e atenção. Seu olho de pombo perscrutava as cabeças, acompanhava os carecas, avaliava as chances.
Então o dia chegou. No setor de carnes redondas, um gorducho não conseguia escolher entre a caixa preta ou a azul, quando a voz metálica gritou um comando e os demais humanos todos obedeceram e se deslocaram para o setor dos pozinhos. O gorducho era careca e estava sozinho.
Carregando comida para a jornada (pedacinho de tomate), mergulhou obstinadamente sobre seu alvo, já sentindo o aconchego lá de dentro da cabeça, quando algo muito errado aconteceu: estava a centímetros da colisão e a careca desviou para o lado. Não conseguiu frear a tempo, foi de cara no chão.
Tudo ficou escuro de repente.

Viu uma luz fraca, acordou sufocado por coisas pesadas. Sentiu que estava em movimento, mas nada podia ver nem tampouco se mover. A luz fraca apenas trazia a certeza de que estava vivo, e a dor de cabeça confirmava isto. Epa! Um flash de compreensão e percebeu que de algum modo estava em uma das gaiolas. Ativar plano B!

Não demorou muito, sentiu diminuir o peso sobre si, e esticou as asas, esticou as pernas, tudo funcionando perfeitamente. A última coisa foi removida, viu que era uma bandeja de carne e percebeu que estava dentro de um saco.
A mão enrugada pegou o saco e colocou junto com as outras caixas, sem dar por sua presença, mas estar em um saco transparente é o mesmo que estar nu e logo ouviu um grito e muitos outros gritos enquanto os humanos se amontoavam ao seu redor e duas mulheres caíram no chão e as pessoas começaram a correr, um pandemônio.
Enquanto isso, rasgou o saco e seguiu as pessoas que saíam pela porta metálica pousado na cabeça de uma delas, lá fora voou o mais alto e mais longe que podia!

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