Esboço de Gente

Um esboço é a promessa de uma obra, que nem sempre se concretiza.
Muitos esboços acabam esquecidos, deixados de lado, cedem a vez a uma idéia posterior ou simplesmente deixam de ser importantes. Então, se escapam da lixeira, e se sobrevivem ao tempo, às vezes são descobertos e retomados por outra pessoa.

Uma criança é uma promessa de ser humano, que nem sempre se concretiza.
Muitas crianças acabam esquecidas, criadas de qualquer maneira, simplesmente deixam de ser importantes para seus pais. Então, se escapam das más influências, e se sobrevivem à sua própria carência, às vezes conseguem ser descobertos e amados por outra pessoa.

P. era o esboço de uma menina perfeita: seus pais podiam oferecer-lhe a melhor educação, todos os brinquedos, um lar para viver, muito carinho.
Ela nasceu assim, mas logo depois algo desandou, sua mãe começara a beber compulsivamente e vinha tendo surtos de agressividade imprevisíveis. O pai, assustado, levou P. para a casa dos avós por alguns meses, mas os avós eram muito velhinhos e nem se preocupavam em saber o que se passava com a menina de cinco anos.

P. agora tinha um quarto só para ela, onde brincava com fósforos, álcool e coisas perigosas assim, todas encontradas no armário do banheiro. Colocava uma boneca sentadinha no parapeito, derramava álcool nela e acendia o fogo. A boneca em chamas ela empurrava e assistia cair no jardim lá em baixo.
Enquanto isso, na casa de seus pais, tudo degenerara. O pai e a mãe agora se odiavam, o tempo todo gritavam e trocavam acusações, bebiam, apelavam às vezes para socos e dentadas. Fora de controle. Houve até ameaças com facas, e um dia a mãe foi internada em uma clínica psiquiátrica, pois além da bebida ficara viciada em antidepressivos, anfetaminas e cocaína.

P. tinha agora 10 anos e morava com o pai, um incêndio tinha destruído a casa dos avós, ela tinha conseguido escapar pulando a janela do quarto, mas os dois tinham ficado presos na sala e não sobreviveram. Era muito ruim morar ali, o pai era outra pessoa e morava com outra mulher que não gostava muito de ter uma menina por ali, isto era visível em cada atitude.
P. viveria como uma gata borralheira se tivesse aceitado a situação, ela fingia aceitar mas vivia uma vida secreta no quartinho dos fundos. Ali guardava suas facas e punhais, lâminas espalhadas por todas as paredes, era nisto que gastava sua mesada e treinava golpes e movimentos a tarde toda.
Como era ela mesma quem limpava a casa, ninguém nunca entrava ali. Ela usava um manual de guerra corpo-a-corpo do exército, comprado do mendigo que fica na porta da escola. Então chegava em casa e treinava.

A mãe já estava internada há alguns anos, recuperada, mas dali não podia sair porque o pai fizera arranjos para retê-la como louca. P. descobriu a história toda um dia que precisou limpar o escritório do pai e encontrou as correspondências da clínica.
Primeiro organizou um pequeno arsenal, que colocou na mochila. Então prendeu um suporte de couro, em diagonal, e na bainha colocou uma faca longa de comandos. Na mão segurava uma de lâmina comprida e estreita, e esperou atrás da porta até que chegasse alguém.
A namorada do pai entrou, e P. cravou a faca até o cabo em sua barriga, cortando os intestinos, depois retirou e tornou a cravá-la na altura do peito, perfurando o coração. Picou em pedaços o corpo e deixou os despojos por ali mesmo. Como o pai não voltava, resolveu ir logo para a clínica resgatar a mãe.

Esta, recuperada mas alienada, nem saberia reconhecer a filha. Viu com espanto uma garota furiosa de 15 anos invadir as enfermarias com uma faca em cada mão, cortando e furando todo mundo, internos, médicos, enfermeiros, colchões. Antes que chegasse à sua ala, lá estava a polícia disparando a esmo e ferindo tantas pessoas quanto a garota.

P. estava em todos os noticiários, fora capturada após a carnificina, ao todo quase 50 mortes e mais de 100 feridos, boa parte com ferimentos de faca e de balas. A imagem mostrava uma bela garota soridente, coberta de sangue. Os repórteres mostravam também imagens da madrasta esquartejada e fotos da casa dos avós.

Antes, porém, que a pudessem julgar, P. tomou vários frascos inteiros de comprimidos que roubara da clínica e saiu de cena.
O pai, arrasado com o rumo das coisas todas, viajou para a Europa para se recuperar, e lá acabou conhecendo uma mulher sensacional, trapezista, e começou tudo mais uma vez.

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