Coisas que acontecem quando não tem ninguém olhando - VII

Uma pizza de carne seca. Sem que ninguém reparasse, abri a cápsula e pulverizei o conteúdo, um fino pó branco, sobre a fatia.
Nada de mais, não era cocaína, apenas um remédio para reduzir a gordura do sangue. É preciso tomar durante as refeições para reduzir os tais triglicerídeos, então se tomo mais um posso ao mesmo tempo comer algo mais, como um antídoto. Antídoto para a pizza.
Diz na bula: pode causar intoxicação da pele, desmaio, náuseas, urticária, queda de cabelos, etc. Então que houvesse alguma compensação.
Na mesa ao lado, uma família normalzinha, pai, mãe, dois filhos. O sujeito deve ser militar, tem cabelo mal cortado, curto e cheio de arestas, fala alto e tem uma expressão de superioridade muito irritante. A esposa fala de boca cheia enquanto tenta convencer o filho a não mastigar de boca aberta e a filha a desligar o MP3 por alguns minutos.
Havia um nativo (a pizzaria ficava em uma cidadezinha do litoral carioca) que tocava violão e cantava músicas dos anos 80 sentado num banquinho redondo, atrás dele uma paisagem pintada representava a praia mais badalada da região e também alguns exemplares da fauna marinha.
A luz da cidade apagou. No blecaute apenas a voz sem amplificação se ouvia, o violão devia ser elétrico mas o cantor não desistia e com sua voz ia preenchendo boa parte da escuridão.
Aquilo durou apenas alguns minutos, logo tudo clareou e era dia novamente, mas estava tudo diferente. O lugar era branco, bem iluminado, mas tinha um teto bem baixo e paredes azulejadas.
Eu estava deitado e também devia estar amarrado, pois não conseguia mover os braços nem as pernas. Com dificuldade, podia girar os globos oculares e vi à esquerda uma grande janela, do outro lado muitas pessoas amontoadas olhavam para mim e conversavam entre si coisas incompreensíveis. Nunca consegui ler lábios.
Estranho não haver sons, nenhum som na verdade. Só uma espécie de vibração no ar, tudo parecia mesmo vibrar na mesma amplitude, imagens e coisas vibrando juntas. Uma sensação de frio por dentro, enquanto por fora uma sensação de calor, talvez devido à presença de tantas lâmpadas.
Senti o horizonte oscilar, descer. Eu estava flutuando?
O teto subia comigo, os azulejos desciam, então novos azulejos deviam brotar no alto, e iam mudando de cor, escurecendo, e estavam coloridos, e ao mesmo tempo ficavam transparentes como se as paredes estivessem virando janelas e aquilo fosse o interior de uma televisão antiga, então lá fora estava aquela família da mesa ao lado mascando pedaços borrachentos de mussarela.
O pai levantou-se da mesa e foi falar algo com o garçom: onde é o banheiro? A menina tornou a colocar os fones.
Estava bem tarde, hora de pedir a conta e caminhar um pouco para evitar os pesadelos.

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